Conclusão
Em minhas análises sobre a constituição do feminino na personagem Maria Monforte pude refletir sobre a forte presença da sedução e o poder de persuasão de uma mulher de gênio decidido e forte. Maria Monforte soube usar de sua feminilidade e de seu poder de sedução sobre Pedro da Maia, dominando-o até quando resolveu abandoná-lo. Ela foi capaz de construir vários personagens dentro dela mesma e com carisma utilizou de sua postura extremamente feminina, frágil e desprotegida para atrair, conquistar, dominar e, seduzir quase todos os personagens da trama, em especial os masculinos. O Patriarca Dom Afonso da Maia, que não a tolerava, também manifesta nesta sua intolerância, o quanto ela lhe chamava a atenção. A sedução desperta sentimentos antagônicos.
A observação da historicidade de sentidos construídos sobre Maria Monforte foi um excelente norteador para as minhas análises, pois através disso, pude observar a sedução em cenas onde apenas no enredo linear, seria difícil perceber. Com o auxílio da imagem e da historicidade, pude acrescentar novas cenas ao meu estudo. No livro, construiu-se a memória sobre Maria Monforte, inicialmente uma mulher extremamente bela e sedutora e, no desenrolar da trama, retratada pelos personagens como uma mulher leviana e inconsequente, que preferiu abandonar lar, família e marido, ao fugir com um amante. Os personagens acabam por silenciar muito do que pensavam sobre ela, e quando o filho perguntava, pouco se dizia, a não ser que era boa, mas que estava morta. O silêncio desprovido de informação remete ao mistério que por sua vez, também seduz.
Na minissérie, a sedução é retratada com essas mesmas características, mas de forma mais acentuada. No início, a sua sedução e beleza são percebidas pela reação em exagero dos homens, mas a de má pessoa também é percebida através dos comentários preconceituosos. Quando ela retorna a Portugal, no fim da vida (em uma cena que só existe na minissérie), ela reencontra Dom Afonso, que diz que nem fêmea abandona a cria para viver com outro macho, expressando o ódio que sentia por ela. Em uma de suas últimas aparições, na minissérie, Maria Monforte é significada de outros modos, indo de sedutora a “bicho”, abaixo da categoria de qualquer fêmea. A sua imagem de deusa inacessível, fiel ao livro, proporcionaram uma produção de sentidos paradoxais ao extremo sobre ela, em minha opinião, da deusa ou da Ceres para uma fêmea insaciável, fútil e vulgar.
Há também uma tentativa de apagamento de sua memória. Dom Afonso, por sua ira e ódio à personagem, tanto no livro, quanto na minissérie, manda queimar todos os retratos que dela existiam na casa de Arroios, só restando um, que estava no diário de Pedro da Maia. Não permitia nem falava sobre ela depois do suicídio de Pedro e só revelou tudo por ter sido obrigado pelas circunstâncias, contanto toda a verdade ao neto.
A ira de Afonso se deu, principalmente, devido ao suicídio de seu único filho, mas antes do casamento com Pedro, houve o repúdio não só do pai, mas de toda a sociedade lisboeta. Maria Monforte era nascida nos Açores, filha de brasileira, crescida também no Brasil, colônia de exploração de Portugal, além de ser filha de um negreiro, traficante de escravos, o que lhe rendeu um apelido pejorativo, “A Negreira”. O pai era repudiado pela alta sociedade, uma vez que vivia da escravidão. E uma família tão tradicional como a Maia não poderia ter um único herdeiro casado com uma mulher oriunda de sua colônia de exploração com um pai que vinha dos Açores.
Muito do que se falou sobre Monforte também produziu muitos sentidos sobre ela, é claro. Ao dizer a Pedro que não era digna dele, que partia com outro homem, julgou-se presa aos mesmos preconceitos. Fugir foi a saída para não ter pena dela mesma, sem ser vítima nem coitada.
Seus sentimentos de mãe sofredora, mulher apaixonada são colocados em segundo plano, ela não hesita, quer sair desse jogo e foge com o amante. Por outro lado, para o personagem Dom Afonso da Maia, essa atitude lhe sugeriu um sentido de mulher que não merece compaixão nem perdão. E, foi por ele, desde o início, repudiada!
Penso que se Dom Afonso encarasse a personagem Maria Monforte com sentidos diferentes, a trama seria bem diferente. Ele era considerado bom pela sociedade da época, uma vez que era conservador e intolerante com a falta de princípios. Foi a intolerância, por sua vez, que causou suas maiores dores e culminou no suicídio.
A mulher em Maria Monforte, eu reafirmo para sintetizar, é retratada de várias formas. Seu feminino foi idolatrado, do ápice da idealização romântica à representação fútil, vulgar e indigna, uma fêmea incompreendida.
Por outro lado, penso nessa mulher como uma revolucionária, que quebrou padrões e fez o que o coração, os sentimentos ou o que o desejo mandava. Como diz Ega a Carlos Eduardo: “quem dera minha mãe fosse uma marafona como a sua” (frase modificada por mim, mas que mantém o sentido da minissérie).
A minissérie se manteve bem fiel ao livro em diversos aspectos, mas nas partes do livro que levavam a mais de uma interpretação, a minissérie acabou por manter uma, a da mulher mais bela e sedutora que Lisboa já conheceu.
Maria Monforte foi uma mulher lutadora, que encarou as consequências dos atos que escolheu praticar. Ela encontrou na beleza a forma de exercer o poder e não se curvou aos preconceitos da sociedade da época. Com a intenção de sentir-se livre, fez sua escolha, talvez para não contra dizer o que se falava dela. Ela é uma síncope de muitas mulheres da realidade e da literatura, e em muitas características, o que nós mulheres gostaríamos de ter, ao menos, quando penso na sedução, na paixão e no poder de persuasão sobre os homens. Afinal, que figura feminina não deseja passar pelos homens e arrancar os seus suspiros?Ou melhor, ter um Pedro da Maia totalmente apaixonado por ela?
Com o presente estudo, concluo que analisara constituição da personagem Maria Monforte na obra Os Maias de Eça de Queiroz e na minissérie de Maria Adelaide Amaral, com a perspectiva dos estudos da linguagem e a comparação das duas materialidades, apesar de algumas dificuldades ao transpor uma materialidade em outra, abriu espaço para a reflexão e reforçou conceitos fundamentais, como historicidade, memória, intertextualidade, discurso verbal e não verbal. Quanto às materialidades, alargou os conceitos de cena, teatro, televisão, teleteatro e minissérie. Em ambas, a interpretação. E no capítulo que descrevi o feminino, diferenciei macho / fêmea de homem / mulher, ao mesmo tempo em que os uni, em um mesmo campo semântico, e os analisei no tempo.
Quanto à minha problemática, percebi que me foi possível, de acordo com meus pressupostos teóricos, analisar a constituição da personagem Maria Monforte da obra Os Maias de Eça de Queiroz, em suas diferentes materialidades, inclusive quando analisei as cenas incluídas na adaptação do romance para a televisão, feito por Maria Adelaide Amaral, tendo como foco a sua sedução.
Penso que para o estudo da minissérie, até mais do que do livro, análises ligadas à memória de forma mais aprofundada poderiam, em outros trabalhos, dar um bom resultado. Por exemplo, o estudo das atitudes da personagem não somente ligadas à sedução, como foi meu foco, mas com outras questões como a traição, a promiscuidade, a atitude dela como mãe. Ou focar em outra personagem, como Maria Eduarda: sua vida, a semelhança entre mãe e filha, o repetir dos destinos. Ou até mesmo na crítica feita pelo autor à sociedade, das posturas promíscuas, do incesto praticado por Carlos Eduardo inconsciente e conscientemente, além da questão da forte presença do destino, que rege a vida dos personagens.
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