Capítulo II
Recortes, descrições e análises
Neste capítulo pretendo mostrar as análises das cenas escolhidas da minissérie e recortes do livro em questão, ambos intitulados Os Maias. Norteei-me pela interpretação das atitudes da personagem Maria Monforte e também nas atitudes dos demais perante essa tão sedutora e polêmica mulher. É o caso das cenas e recortes analisados em função da historicidade e da memória que elas produzem sobre Monforte e que são constituintes do livro e da minissérie. Os recursos usados pela minissérie para a composição das cenas auxiliaram-me e foram fundamentais nas escolhas e seleções das cenas que trago para as análises.
Foram selecionadas três cenas e seus correspondentes no livro. As duas primeiras se justificam pela memória, pelos dizeres dos personagens sobre essa mulher tão bela e tão polêmica que habitou Lisboa conquistando os corações dos homens que por ela se apaixonaram e principalmente a mente e o sentimentalismo de Eça de Queiroz. Já a terceira, a do suicídio de Pedro da Maia, é justificada pelo abandono e negação do amor no ápice da sedução de Maria Monforte pelo marido.
Minhas análises foram feitas através da constituição do corpus de recortes de textos e de cenas de vídeo. Analiso as descrições dos autores da minissérie sobre a personagem Maria Monforte, buscando compreender as semelhanças e especificidades do modo de tratamento do feminino nessas diferentes produções.
Estas reflexões levam em conta as duas materialidades distintas analisadas: o livro e a minissérie; além das épocas distintas em que as obras foram realizadas - o livro datado de 1888, e a minissérie de 2001 - bem como o olhar específico da produtora da minissérie sobre o livro, para a adaptação da obra.
Convido-os a ler e a deliciarem-se com minhas análises e espero transmitir ao menos um pouquinho da minha satisfação e emoção ao adentrar tão bela obra!
Vamos às leituras.
Análises
1- Cena 1 - Cena da Tourada
Esse recorte se justifica pela presença da sedução de Maria Monforte observada pelo conceito da historicidade e da memória, estudados na Análise de Discurso. E pela atitude de Pedro da Maia, percebida na minissérie e no relatar de suas atitudes apaixonadas ao longo do romance trágico.
Recorte da cena da Minissérie
Dom Diogo: “Ora, então a menina gosta de touradas?”
Monforte: “Em Portugal tem pouco sangue, prefiro as espanholas.”
Aparece Dom Diogo junto com Dom Afonso e Pedro da Maia. Pedro pede licença ao pai e sai do camarote destinado aos Maias para ir ao de Monforte. O pai olha pra onde o filho vai. Ele diz:
“-- Volto já!”
Aparece Monforte, o seu pai, Seu Manoel, e Dom Diogo conversando. Ela sorri sempre de sombrinha vermelha e balança o leque. Aparece a tourada. Pedro sai andando e encontra a sua madrinha:
-- “Pedro! Até que em fim saíste de casa! Louvado seja Deus! Que há dois anos eu não te vejo. Dá um beijo em tua madrinha. Excusa se ter vergonha que te vi nascer! Meu Deus, ele não está bonito! (Ela diz ao senhor que a acompanha). Ah! Quem te viu no funeral de sua mãe, pensou que também querias morrer”.
-- “Com licença!” Ele diz timidamente e sai apressado.
Aparece o touro, o pai olha pra onde ele vai. Pedro chega até o espaço destinado à família de Maria e ela não está mais. Ele volta chateado.
-- “Estás bem?”- diz o pai.
-- “Estou”- responde Pedro.
-- “Estava a dizer a teu pai que pensei que tinhas entrado para um convento, o que seria um grande prejuízo para as mocinhas casadoiras”- diz Maria da Gama, madrinha de Pedro.
Os três ficam quietos e Pedro avista Maria Monforte novamente no seu assento. Ela olha para os touros com olhar sedutor e sanguinário, sempre sacudindo o leque com seus seios à mostra em um vestido vermelho, cor de sangue e uma sombrinha da mesma cor.-- “Dom Diogo!”- diz Pedro da Maia. Dom Diogo muito distraído pelas touradas, responde um tempo depois:
-- “Falou comigo?”
-- “Não!”- responde Pedro timidamente.
 Esta imagem corresponde à Cena 1 do DVD das cenas analisadas e anexado a esta dissertação. Trata-se da cena em que Maria Monforte vai às touradas e fica vendo o touro ser esfaqueado e aproveita para jogar todo o seu charme para seduzir os homens. O que mais se percebe nas atitudes de sedução da personagem são o jogo da cabeça para trás, o olhar meio aberto e meio fechado e a boca semi-aberta, como se respirasse por ela ou fosse beijar alguém.
Recorte do texto do livro
“Em todo o caso, quando Lisboa descobriu a legenda de sangue de negros, o entusiasmo pela Monforte calmou! Que diabo! Juno tinha sangue de assassino; a beltà de Ticiano era filha de negreiro! As senhoras, deliciando-se em vilipendiar uma mulher tão loura, tão linda e com tantas joias, chamaram-lhe logo ‘a negreira’! Quando ela aparecia agora no teatro, D. Maria da Gama afetava esconder a face detrás do leque, porque lhe parecia ver na rapariga (sobretudo quando ela usava os seus belos rubis) o sangue das facadas que lhe dera o papazito! E tinham-na caluniado abominavelmente. Assim depois de passarem em Lisboa o primeiro inverno, os Monfortes sumiram-se; pois disse- lhe logo, com furor que estavam arruinados, que a polícia perseguia o velho; mil perversidades... O excelente Monforte, que sofre de reumatismos articulares, achava-se tranquilamente, ricamente, tomando as águas dos Pirineus....
Fora lá que os Melo os conhecera...
--“ Ah! Os Melo conhece-os?”- exclamou Pedro.
Pedro daí a um momento deixou o Marrare; e nessa noite, antes de recolher, apesar da chuva fria e miúda, andou rondando uma hora, coma imaginação toda acesa, o palacete dos Vargas, apagado e mudo. Depois daí duas semanas, o Alencar, entrando em São Carlos ao fim do primeiro ato do Barbeiro, ficou assombrado ao ver Pedro da Maia instalado na frisa da Monforte, à frente, ao lado de Maria, com uma camélia escarlate na casaca, igual às de um ramo pousado no rebordo de veludo. O Alencar foi observar ‘o caso’ do camarote dos Gamas. Pedro voltara à sua cadeira e de braços cruzados, contemplara Maria. Ela conservou, durante um tempo, a sua atitude de deusa insensível, mas depois no dueto de Rosina e Lindor duas vezes aos seus olhos azuis e profundos se fixaram nele, gravemente e muito tempo. O Alencar correu ao Marrare, de braços pro ar, a berrar a novidade.
Não tardou que se falasse em toda Lisboa da paixão de Pedro da Maia pela negreira. Ele também namorou-a publicamente à antiga, plantado a uma esquina, defronte dos palacetes dos Vargas, com os olhos cravados na janela dela, imóvel e pálido de êxtase.” (Queiroz, p.30, 2006)
Descrições e análises comparativas
Essa cena da minissérie não é tão fiel ao livro. A sedução de Maria Monforte torna-se perceptível mais pela reação de Pedro da Maia, que a avista pela primeira vez, do que pela sua postura ao ver que era olhada apaixonadamente por um homem da alta sociedade lisboeta. A cena retrata o passeio de Maria Monforte às touradas e todos passam a olhá-la, sempre muito bem vestida, com a cabeça muito erguida e a postura ereta, como quem quer ser vista e admirada. Ela era um pouco alta, estava sempre com as costas muito retas e a parte de cima dos seios à mostra. Os demais personagens ficam maravilhados ao verem suas roupas e suas joias, as mulheres suspiram ao vê-la, espantadas pela beleza. A sua aparição provoca todo tipo de reação nas pessoas.
Quando ela percebe que um homem da alta sociedade lisboeta, da família mais tradicional do lugar, está admirando-a, ela aproveita para fazer charme para ele, tentando seduzi-lo. Olha-o profundo nos olhos e faz movimentos com o corpo. E consegue. Ela joga o corpo para trás, sorrindo e sacudindo o seu leque e respira deixando a parte superior dos seios à mostra. E o encara. Ele sorri, e o pai percebe o nascimento de uma paixão desenfreada e se preocupa. Pedro tenta conversar com Dom Diogo, que mostra pouco se importar com isso: ele já os conhecia e estava mais interessado nos touros.
Pedro vai até o lugar onde Maria está sentada com o pai, mas ao chegar lá, ela já não está mais em sua cadeira. Ele volta desapontado e chateado para o seu lugar junto ao pai, mas logo a vê novamente.
Ela mais uma vez troca olhares com ele. Ela permanece sentada ao seu lado na cadeira, joga seu corpo e sorri para ele para que ele a olhe e admire. E continua a torcer pelo touro e vibrar quando o toureiro fere o pobre animal. Ela chega até a pular de sua cadeira, com um movimento delicado com os braços. Esta é uma cena que é possível perceber a sedução mais pela encenação do que pelo recorte do livro.
Nesta cena, também há diálogos e partes modificadas por Maria Adelaide Amaral, que não correspondem fielmente ao livro de Eça de Queiroz.
A sedução na personagem é muito mais perceptível nessa frase: “Em Portugal tem pouco sangue, prefiro as espanholas.” Ao dizer isso, ela faz um olhar muito característico de sedução, um olhar forte que combina com a expressão de sua boca e a sua cabeça sempre sendo inclinada. Parece que se mistura dentro da personagem um sentimento vingativo, sanguinário sadomasoquista, com seu olhar angelical de beleza pura que a ligam à bondade. O jogo de seu corpo também é charmoso, como se o seu tronco dançasse levemente perante os homens.
Aparece Dom Diogo e Pedro da Maia. Pedro pede licença ao pai e sai do lugar dos Maias para ir ao camarote de Monforte. O pai olha pra onde o filho vai. Ele diz: “-- Volto já!”
Os três ficam quietos e Pedro avista Maria Monforte novamente no seu assento. Ela estava olhando para os touros com o mesmo olhar fixo nos ferimentos dele, sempre sacudindo o leque com seus seios à mostra em um vestido vermelho, cor de sangue e uma sombrinha da mesma cor. Há, nos jogos de cenas, algumas trocas de olhares entre os dois personagens, ela o encara de lado, sempre com um rosto meio viradinho e a cabeça levemente inclinada. E o seio sempre para baixo e para cima como se fosse escapar do vestido e do espartilho que havia por baixo, que os apertava muito.
-- “Dom Diogo!” - diz Pedro da Maia. Dom Diogo, muito distraído pelas touradas, responde um tempo depois:
-- “Falou comigo?”
-- “Não!” - responde Pedro timidamente, e diferente dela, olha sempre para baixo.
Maria olha com toda a sua sedução para o touro que é esfaqueado e Pedro a admirá-la; Sorri e pisca olhando para ele. Essa postura de Maria, sempre com o corpo levemente na diagonal também é muito provocativa. Pedro suspira e eles trocam olhares.
Há no DVD um jogo de cenas entre o rosto dela e o dele e o touro que é esfaqueado. Eles se olham e ela sempre tenciona provocá-lo. Até que, por causa do toureador, que vence o touro ao enfiar-lhe mais uma lança, ela se levanta para vibrar. Pedro sai novamente. O pai conversa com Maria da Gama, a madrinha de Pedro; e ela lhe conta sobre Maria, “que era ‘gente de má cepa’, que ela pode até ser brasileira, mas que o pai havia nascido nos Açoures e tinha fugido de lá por ter matado um homem a facadas.” (Fala do DVD). Dom Afonso não gosta do que ouve.
Narrador: “Pedro estava tomado por uma dessas paixões que assaltam uma existência, empurrando-lhe de roldão aos abismos. Pedro da Maia amava!”
O leque também torna-se um elemento que ajuda nessa provocação, na sedução que Maria exerce sobre os homens, o calor nos transmite a ideia de mulher fogosa, sedutora que fica sacudindo o tempo todo em redor do rosto e dos seios em seus movimentos. Além do olhar profundo que encara Pedro e o touro, aquele olhar de mulher desprotegida que pede por amor e atenção. Maria sempre tira o cabelo do rosto, para que a franja não impeça o realce de sua beleza. Os movimentos dela são naturalmente charmosos. E o prazer que Maria tem ao ver o sangue do touro que escorre a cada vez que uma lança o fere. O olhar dela parece que brilha, é um prazer sádico, mesclado à postura de bondade que a beleza de sua figura sugere.
2- Cena 2 - Maria Monforte, a sedução e a historicidade
Este segundo recorte justifica-se pela atitude de Pedro da Maia. A sedução é visível, uma vez que ele, ao vê-la não se contenta e vai ao seu encontro todo encantado e perdidamente apaixonado.
Recorte da cena da Minissérie
Maria Monforte vai ao teatro assistir à ópera. Ao chegar cheia de jóias, mais precisamente de rubis e um vestido muito chique, chama a atenção de todos os personagens. Pedro, ao vê-la não para de olhá-la. E as mulheres começam a conversar sobre ela.
Ele, então, vai até a sua frisa, assim que o pai Monforte sai, e lhe diz:“-- Estavas sozinha!”
Ela responde: “-- Já não estou mais!”E dá uma batidinha na cadeira ao lado, com o leque para que ele sente.
Maria da Gama, a madrinha, pergunta à Maria da Cunha:
-- “O Pedro da Maia está doido?”
-- “Está apaixonado, Maria!” - responde Maria da Cunha.
-- “Mas essa rapariga nem como amante lhe serve!” - diz Maria da Gama.
-- “Ora, Maria, a rapariga não tem culpa dos feitos do pai!” - diz Maria da Cunha.
-- “Mas do estigma de assassino não se livrou ela! O pai morre se souber que Pedro está metido com essa gente!” - diz Gama.
Entra Alencar e comenta:
-- “A compaixão é virtude dos Deuses, minha senhora!”
-- “Eu não aspiro à santidade, Alencar!” - responde Gama.
Recorte do texto do livro
“Nunca Maria Monforte aparecera mais bela: tinha uma dessas ‘toillettes’ excessivas e teatrais que ofendiam Lisboa e faziam dizer às senhoras ‘que ela se vestia como uma cômica’. Estava de seda cor de trigo, com duas rosas amarelas e uma espiga nas tranças, opalas e sobre o colo e nos braços; e estes tons de seara madura batida de sol, fundindo-se com o ouro dos cabelos, iluminando-lhe a carnação ebúrnea, banhando as suas formas de estátua, davam-lhe o esplendor de uma Ceres. Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes louros do Melo, que conversava de pé com o papá Monforte, escondido como sempre no canto negro da frisa. ”(Queiroz,2006 p.30).
Descrição e análise comparativas
Os sentidos sobre Maria Monforte não eram produzidos a partir dela mesma apenas, nem na trama, nem no livro. Os sentidos sobre ela eram definidos, sobretudo pelas interpretações dos outros personagens, do narrador e dos autores (Eça de Queiróz e Maria Adelaide Amaral). Ela vai sendo significada através do que os outros pensam e dizem sobre ela.
Enquanto descrevem Maria Monforte, ela permanece viva na trama, mesmo após a sua morte, em função da historicidade produzida sobre ela, uma vez que, como sabemos pelo livro, quando o filho de Monforte descobre tudo sobre ela, a personagem já estava morta há dois anos. Já na minissérie ela desaparece e só volta em uma das últimas cenas, quando já era dada como morta pelo personagem Dom Afonso. De qualquer modo, ela é retratada e continua viva na trama pela historicidade construída sobre ela.
Ela é reconstituída através do que falam, da caracterização dada a ela pelos personagens: “nunca fora mais bela” e do que se silenciou por vinte anos a seu respeito por Dom Afonso, que não queria que Carlos Eduardo, o neto, soubesse sobre a mãe. Existem vários discursos sobre ela, que não vêm dela, mas dos outros personagens e até mesmo de Eça de Queiroz e de Maria Adelaide Amaral.
No livro, sabemos de sua sedução, beleza e encantamento apenas por relatos alheios. Sua beleza e sedução são relatadas no início da obra e em algumas partes do meio, para o filho, que provocaram o desenrolar da trama e modificou toda a história da família Maia: suicídios, incestos, mortes por assassinatos e disputas. Ela constituiu-se nessa cena, reconstruiu-se e se manteve sempre viva pela ideologia e pelo pensar alheio.
Essa cena nos faz pensar em ideologias, e, nesse sentido, é importante considerar que Pedro era um fidalgo de uma família tradicional, ou, talvez, a mais tradicional daquela época, de Portugal, e residente de Lisboa. Fato que impedia que ele se casasse ou se envolvesse sentimentalmente com uma mulher que lhe fosse inferior, principalmente a filha de um ex-traficante de escravos, reconhecido pejorativamente por “negreiro”, além de ser oriundo dos Açores, que não pertencia e não era Lisboa. E como consequência, não ter nascido no mesmo berço que Pedro da Maia. Essas questões eram muito consideradas nos casamentos da época.
Maria, apesar de considerada inferior, o atraiu por ser diferente dele. Ela tinha características e atitudes que nele faltavam como coragem, exibição, ostentação e capacidade por lutar pelo que quer. Foi isso, que além da beleza, atraiu Pedro para si. Mesmo sabendo do repúdio que as pessoas tinham por ela, Monforte não se abalava, andava sempre de cabeça erguida, e se mostrava para as pessoas. A sedução sempre vem acompanhada do que é negado, do que é proibido, por isso Pedro também prendeu-se a ela.
Essa cena é a primeira cena em que Maria Monforte aparece em público no teatro, e Pedro da Maia a vê e vai falar com ela. Queirós a retrata assim:
“Nunca Maria Monforte parecera mais bela: tinha uma dessas toilletes excessivas e teatrais que ofendiam Lisboa e faziam dizer às senhoras que ela se vestia como ‘cômica’. Estava de seda cor de trigo, com duas rosas amarelas e uma espiga nas tranças, opalas (...) banhando as suas formas de estátua, davam-lhes o esplendor de uma Ceres” (QUEIROZ, 2006,p.30).
Na minissérie, essa descrição é falada pelo narrador da trama. E as falas reproduzidas pelos personagens.
Em algumas cenas, os sentidos sobre Monforte constituíram-se, construíram-se e reconstruíram-se pela ideologia alheia, mais especificamente, nas partes da trama que são narradas. Já os personagens diziam: “caramba! É bonita!” (p.33) “Vale mais que dez “patacos” da época de Dom João VI” (Amaral, 2001). Já no livro se encontra a citação: “Rapazes! É como um ducado de ouro novo entre os velhos patacos do tempo do senhor Dom João VI” (Queiroz, p.28)
E assim eram os diálogos dos personagens a respeito de Monforte. Onde ela passava causava impactos nos homens e nas mulheres. Os homens ficavam encantados, admirados, cobiçavam-na, até mesmo diante de Pedro. Tiravam-na para dançar, paqueravam-na, e suspiravam quando ela passava. Já as mulheres tiravam também suas conclusões, além de a acharem linda, maravilhosa, sentiam um pouco de incômodo e inveja quando ela passava. Por isso, encaravam-na como uma cômica, achava as suas combinações de joias excessivas e os rubis parecidos com sangue. E esse sentimento justifica a fala da personagem Maria da Gama nessa cena.
Maria da Gama, madrinha de Pedro, por exemplo, afirma: “o vermelho dos rubis me lembra sangue das facadas que lhe dera o papazito” E para alimentar a inveja e o incômodo que as senhoras sentiam por ela, vibraram ao saber de seu passado negreiro e por ser oriunda dos Açores. A questão do preconceito e repúdio declarado nas falas de Maria da Gama mostram o incômodo e justificam o motivo pelo qual Maria Monforte não foi feliz em Portugal: o fato de não ter nascido em Lisboa e sim nos Açores cria todo um preconceito na boa sociedade Lisboeta. O que justifica o fato de Maria da Gama dizer que Pedro estava doido e que nem como amante a rapariga lhe servia. E Maria da Cunha justifica dizendo: “ela não tem culpa dos feitos do pai”, ou seja, isso explica o repúdio por ser filha de um traficante de escravo e de assassino, uma vez que seu pai matou um homem em uma briga.
Existe também uma forte ligação de Monforte com o Brasil;ela aqui morou antes de voltar à Portugal, e ela mesma diz que “lá”tinha sido feliz. O pai até pensa em partir novamente com a filha. Devemos levar em conta que o Brasil foi colônia de exploração de Portugal, então logicamente naquela época, não se faria um bom casamento em uma colônia, como se faria na metrópole,e o mesmo raciocínio pode ser feito pelo fato do pai ter sido negreiro, gerando o preconceito com essa profissão, vista com maus olhos pelos portugueses legítimos de Portugal.
Todos os sentidos sobre Monforte e as descrições a definem como uma personagem extremamente polêmica, encantadora e sedutora na trama. O próprio repúdio cria curiosidades nos demais personagens e ela os incomoda. No livro há apenas as descrições, e na minissérie, essa parte é narrada, mas a personagem aparece em público e é olhada por todos. A sedução se firma mais pelo que ela representa perante os olhares alheios, do que por suas atitudes propriamente ditas. Torna-se evidente nessa cena o quanto ela incomoda as pessoas em todos os sentidos. Tal característica durou e causou consequências e fatos pelo correr de muitos anos, afetando gerações.
O recorte no livro é descrito por Eça de Queiroz. A sedução é perceptível pela forma como o autor descreve a personagem Maria Monforte. Ele inicia a descrição dizendo que ela “nunca fora mais bela”, ou seja, para uma personagem que já era muito bela, nunca ter sido mais, como naquela hora é porque ela ultrapassou qualquer padrão de beleza até aquele momento. Outro fator: “tinha uma dessas toilletes excessivas e teatrais, que ofendiam Lisboa”, ou seja, ela se vestia com exagero, mas sabia combinar e estar de acordo com o figurino para a ocasião e para a época. E que ainda ofendiam Lisboa, ela era tão bela e tão sedutora, que causava impacto por onde passava, na cidade toda. Deixava os homens surpresos, apaixonados e provocava admiração, riso, gozo, inveja e o cômico nas mulheres. Ela incomodava as pessoas por onde passava e provocava as mais diversas opiniões. Através da historicidade, produziram-se sentidos sobre ela. Além de divergir opiniões.
3- Cena 3–Sedução pela negação
Esse recorte se justifica pela negação do sentimento de Pedro, por Maria Monforte, que por perdê-la no ápice de sua paixão, sentiu o extremo de sua sedução. Suicidou-se por conta da perda da mulher amada. No recorte da minissérie há a inclusão de uma cena apenas relatada por Pedro no livro.
Recorte da cena da minissérie
“-- Já vais?” Pergunta Monforte.
“-- É preciso! O Vilaça combinou cedo com os compradores.” Responde Pedro da Maia.
Monforte chora. E o abraça. “Não esqueças de que adoro-te”
“-- Eu também te adoro, meu amor!”
Pedro, então, passa dois dias fora de Lisboa, e Maria, sempre triste e chorando, arruma as malas. Deixa o menino Carlos Eduardo com a ama e pega a menina, Maria Eduarda. Diz à ama que vai ao encontro de Pedro e sai de casa sem levar a sua funcionária. A ama estranha a atitude, mas não consegue impedi-la. Monforte deixa uma carta no livro de Pedro e foge com Tancredo.
Passados dois dias, Pedro chega a sua casa e vai logo perguntar à ama onde estava a sua senhora e a ama responde:
“--Não foi ter com o senhor?”
“-- O que estás a dizer, mulher?”
Pedro, desesperado, passa a revirar o armário e ao mexer no livro acha a carta com o seguinte escrito: “É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo. Esquece-me que não sou digna de ti, e levo Maria porque não me posso separar dela.” Pedro, então, pega Carlos Eduardo e vai para a casa de seu pai, Dom Afonso, desesperado. Ele conta ao pai que a esposa havia fugido com um homem, levando uma maleta, um cofre de joias e a pequena Maria Eduarda e que havia dito à ama que ia ter com ele. Dom Afonso pergunta se a ama não tinha estranhado. Ele diz que sim, mas que não havia conseguido impedir. Dom Afonso pensa na vergonha daquele filho, que desprezou a sua autoridade de pai ao casar com aquela mulher a quem ele não aprovava. Mesmo assim, abraça-o e pergunta pelo menino. A ama entrega-o no colo do avô e o bebê joga seu guizo no chão. Dom Afonso ensina-lhe que é preciso amar o vovô e devolve-o à ama, pedindo que ela arranje o quarto mais arejado da casa e que instale o menino. O pai, então, vai ao encontro do filho que estava molhado e chorando no chão e pede a ele que conte o ocorrido. O pai lê o bilhete. O narrador fala que “era um papel já sujo, e desde essa manhã, decerto, muitas vezes relido, amarrotado com fúria.” Continha essas palavras:
(Aparece então, a voz da atriz Simone Spoladore)
“É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me que não sou digna de ti, levo Maria porque não me posso separar dela!”
Dom Afonso pergunta o que mais o filho sabe, e diz que não adianta só chorar, quer saber pra onde eles haviam fugido afinal ela havia levado a filha dele. Ele cai ao chão, e só chora, diz que não sabia pra onde haviam fugido.
Pedro transtornado pergunta se ainda janta-se cedo na casa e pede ao pai que mande o Teixeira levar para o seu quarto um cálice de genebra. Ele pede ao pai que vá jantar, sobe para o seu quarto e chora.
Todos da casa se recolhem para dormir, os dois permanecem acordados, o relógio soa as horas sem parar. O pai rola na cama inquieto sem conseguir dormir, olha o relógio novamente, vira para o outro lado. Enquanto isso, Pedro anda pelo quarto, chora no chão, procura algo que tire brutalmente sua dor. Pega silenciosamente o revólver e dá um tiro no coração, caindo morto em seu quarto. O pai levanta assustado com o barulho do tiro e corre até o quarto do filho, e encontra-o morto. Abraça-o e aos gritos e aos prantos pergunta: “Pedro, o que foi que tu fizeste, filho?” E encontra uma carta de Pedro endereçada “Ao Papá”.Os criados mostram o movimento da casa e preparam o sepultamento. O pai desolado com a situação, encomenda ao Vilaça que encontre Maria Monforte e que lhe traga a filha. Aos poucos, os amigos vão chegando à casa dos Maias para o velório. E para completar o desgosto de Afonso, o Padre Vasques diz que nenhum cemitério aceitará sepultar o menino. O pai, então, leva-o para ser enterrado em outra propriedade Maia.
Recortes do texto do livro
“Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Afonso da Maia estava em seu escritório lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando os olhos do livro, viu Pedro diante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face lívida, sob cabelos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pai, rompeu a chorar perdidamente.
“-- Pedro! Que sucedeu, filho?”
Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, à ideia do filho livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo à sua solidão os dois netos, toda uma descendência para amar! E repetia, trêmulo também, desprendendo-o de si com grande amor:
“-- Sossega, filho, que foi?”
Pedro então caiu para o canapé, como cai um corpo morto; e levantando para o pai um rosto devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra, numa voz surda:
“-- Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei esta manhã... A Maria tinha fugido de casa com a pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou!”
Afonso da Maia ficou diante do filho, quieto, mudo, como uma figura de pedra; e a sua bela face, onde todo o sangue subira, enchia-se pouco a pouco, de uma grande cólera. Viu, num relance, o escândalo, a cidade galhofando, as compaixões, o seu nome pela lama. E era aquele filho, que, desprezando sua autoridade de pai, ligando-se a essa criatura, estragara o sangue da raça, cobria agora a sua casa de vexame. E ali estava! Ali jazia sem um grito, sem um furor, um arranque brutal de um homem traído! Vinha atirar-se para um sofá chorando miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a passear pela sala, rígido e áspero, cerrando os lábios para que não escapassem as palavras de ira e injúria que lhe enchiam o peito em tumulto... Mas era pai: ouvia ao seu lado, aquele soluçar de funda dor; via tremer aquele pobre corpo desgraçado, que ele outrora embalara nos braços, parou junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça entre as mãos e beijou-o na testa, uma vez, outra vez, como se ele fosse ainda uma criança, restituindo-lhe ali para sempre a sua ternura inteira.
“-- Tinha razão, meu pai, tinha razão “-murmurava Pedro entre lágrimas.
Depois, ficaram calados. Fora, as pancadas sucessivas da chuva batiam a casa, a quinta, num clamor prolongado; e as árvores, sob as janelas, ramalhavam num vasto vento de inverno.
Foi Afonso que quebrou o silêncio:
“-- Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? Não é só chorar... “
“-- Não sei nada”, -respondeu Pedro num longo esforço.
“-- Sei que fugiu. Eu saí de Lisboa na segunda feira. Nessa mesma noite, ela partiu de casa numa carruagem, com uma maleta, um cofre de joias, uma criada italiana que tinha agora e a pequena. Disse à governanta e à ama do pequeno que ia ter comigo. Elas estranharam, mas o que haviam de fazer?... Quando voltei achei esta carta”.
Era um papel já sujo, e desde essa manhã decerto muitas vezes relido, amarrotado com fúria. Continha essas palavras:
‘É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me, que não sou digna de ti, e levo a Maria porque não me posso separar dela’.
“-- E o pequeno, onde está o pequeno?”- exclamou Dom Afonso.
Pedro pareceu recordar-se:
“-- Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.”
O velho correu logo; e daí a pouco aparecia, erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adorável bochecha fresca e cor-de-rosa. Todo ele ria, agitando o seu guiso de prata. A ama não passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxinha na mão.
Afonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e acomodou o neto no colo. Os olhos enchiam-lhe de uma bela luz de ternura; parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha doméstica; agora só havia ali aquela facezinha tenra, que se lhe babava nos braços...
“-- Como se chama ele?”
“-- Carlos Eduardo”- murmurou a ama.
“-- Carlos Eduardo, hein?”
Ficou a olhá-lo muito tempo, como procurando nele os sinais da sua raça; depois, tomou-lhe na sua as duas mãozinhas vermelhas que não largavam o guizo, e muito grave, como se a criança o percebesse, disse-lhe:
“-- Olha pra mim. Eu sou seu avô. É necessário amar o avô!”E àquela forte voz, o pequeno, com efeito, abriu os seus lindos olhos para ele, sérios de repente, muito fixos, sem medo das barbas grisalhas; depois rompeu pular-lhe nos braços,desprendeu a mãozinha, e martelou-lhe furiosamente a cabeça com o guizo.
Toda a face do velho sorria àquela viçosa alegria; apertou-o ao seu largo peito muito tempo. Pôs-lhe na face um beijo longo, consolado, enternecido, o seu primeiro beijo de avô; depois com todo o cuidado, foi colocá-lo nos braços da ama.
“-- Vá, ama, vá... A Gertrudes já lá anda a arranjar-lhe o quarto; vá ver o que é necessário.”
Fechou a porta e veio sentar-se junto do filho, que não movera do canto do sofá, nem despregara os olhos do chão.
“-- Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha que não nos vemos há três anos, filho.”
Ergueu-se,alongou a vista à quinta, tão triste, sob a chuva; depois derramando-a morosamente pela livraria, considerou um momento o seu próprio retrato, feito em Roma, aos 12 anos, todo de veludo azul, com uma rosa na mão. E repetia ainda, amargamente:
“--Tinhas razão, meu pai, tinha razão...”
E pouco a pouco, passeando e suspirando, começou a falar daqueles últimos anos, o inverno passado em Paris, a vida em Arroios, a intimidade do italiano na casa, os planos de reconciliação; por fim aquela carta infame, sem pudor, invocando a fatalidade, arremessando-lhe o nome de outro! ... No primeiro momento tivera só ideias de sangue e quisera persegui-los. Mas conservava um clarão de razão. Seria ridículo, não é verdade? Decerto a fuga fora de antemão preparada, e não havia de ir correndo as estalagens da Europa à busca de sua mulher... Ir lamentar-se à polícia, fazê-los prender? Uma imbecilidade; nem impedia que ela fosse já por esses caminhos fora dormindo com outro... Restava-lhe somente o desprezo. Era uma bonita amante que tivera alguns anos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho, sem mãe, com um nome. Paciência! Necessitava esquecer, partir para uma longa viagem, para a América talvez; e o pai veria, havia de voltar consolado e forte.
Dizia estas coisas sensatas, passeando devagar, com o charuto apagado nos dedos, numa voz que se calmava. Mas, de repente, parou diante do pai com um riso seco, um brilho feroz nos olhos.
“-- Sempre desejei ver a América, é uma boa ocasião agora... É mais uma ocasião famosa, hein? Posso até naturalizar-me, chegar à presidente, ou rebentar... Ah! Ah!”
“-- Sim, mais tarde, depois pensa nisso, filho”- acudiu o velho assustado. Nesse momento, a sineta do jantar começou a tocar lentamente, ao fundo do corredor.
“-- Ainda janta cedo, hein?”-- disse Pedro.
Teve um suspiro cansado, lento e murmurou:
“-- Nós jantávamos às sete...”
Quis então que o pai fosse para a mesa, não haveria motivo para que se não jantasse. Ele ia um bocado acima, ao seu antigo quarto de solteiro... Ainda lá tinha cama, não é verdade? Não, não queria tomar nada...
“-- O Teixeira que me leve um cálice de genebra... Ainda cá está o Teixeira, coitado!”
E vendo Afonso sentado, repetiu, já impaciente:
“-- Vá jantar, meu pai, pelo amor de Deus...”
Saiu. O pai ouviu-lhe os passos por cima, e o ruído de janelas desabridamente abertas. Foi então andando para a sala de jantar, onde os criados que, pela ama,sabiam de certo desgosto, se moviam em pontas de pés, com a lentidão contristada de uma casa onde há morte. Afonso sentou-se à mesa só, mas já lá estava outra vez o talher de Pedro; rosas de inverno esfolhavam-se num vaso de Japão; e o velho papagaio agitado com a chuva mexia-se furiosamente no poleiro.
Afonso tomou uma colher de sopa, depois rolou a sua poltrona para junto do fogão; e ali ficou envolvido pouco a pouco naquele melancólico crepúsculo de dezembro, com os olhos no lume, escutando o sudoeste contra as vidraças, pensando em todas as coisas terríveis que assim invadiram num tropel patético a sua paz de velho. Mas no meio da sua dor, funda como era, ele percebia um ponto, um recanto do seu coração onde alguma coisa de muito doce, de muito novo, palpitava com uma frescura de renascimento, como se algures, no seu ser, estivesse rompendo, borbulhando uma nascente rica de alegrias futuras; e toda a sua face sorria à chama alegre, revendo a bochechinha rosada, sob as rendas brancas da touca...
Pela casa, no entanto tinham-se acendido as luzes. Já inquieto, subiu ao quarto do filho, estava tudo escuro, tão úmido e frio, como se a chuva caísse dentro. Um arrepio confrangeu o velho, e quando chamou, a voz de Pedro veio do negro da janela; estava lá, com a vidraça aberta, sentado fora da varanda, voltado para a noite brava, para o sombrio rumor das ramagens, recebendo na face o vento, a água, toda a invernia agreste.
“-- Pois estás aqui, filho!” _ exclamou Afonso. “--Os criados hão de querer arranjar o quarto, desce um momento... Estás todo molhado, Pedro!”
Apalpava-lhe o joelho, as mãos regaladas. Pedro ergueu-se com um estremeção, desprendeu-se, impaciente daquela ternura do velho.
“--Querem arranjar o quarto, hein? Faz-me bem o ar, faz-me tão bem!” O Teixeira trouxe luzes, e atrás dele apareceu o criado de Pedro, que chegara nesse momento de Arroios, com um largo estojo de viagens recoberto de oleado. As malas, tinha-as deixado embaixo: e o cocheiro viera também, como nenhum dos senhores estava em casa...
“-- Bem, bem - interrompeu Afonso. -- O senhor Vilaça lá irá amanhã, e ele dará as ordens.”
O criado, então, em bicos de pés, foi depor o estojo sobre o mármore da cômoda: ainda lá restavam antigos frascos de toillete de Pedro; e os castiçais sobre a mesa alumiavam o grande leito triste de solteiro com os colchões dobrados ao meio.
A Gertrudes, toda atarefada, entrara com os braços carregados de roupa de cama; o Teixeira bateu vivamente os travesseiros; o criado de Arroios, pousando o chapéu veio a um canto, e sempre em pontas dos pés, veio a ajudá-los também. Pedro, no entanto, como sonâmbulo, voltara para a varanda, com a cabeça à chuva, atraído por aquela treva da quinta que se cavava embaixo com um rumor de mar bravo. Afonso, então, puxou-lhe o braço, quase com aspereza.
“-- Pedro, deixa arranjar o quarto! Desce um momento.”
Ele seguiu maquinalmente o pai à livraria, mordendo o charuto apagado que desde tarde conservava na mão. Sentou-se longe da luz, ao canto do sofá, ali ficou mudo e entorpecido. Muito tempo só os passos lentos do velho, ao comprido das altas estantes, quebraram o silêncio em que toda sala ia adormecendo. Uma brasa morria no fogão. A noite parecia mais áspera. Eram de repente vergastadas de água contra as vidraças trazidas numa rajada, que longamente, num clamor teimoso, faziam escoar um dilúvio dos telhados; depois havia uma calma tenebrosa, com uma sussurração distante de vento entre ramagens; nesse silêncio, as goteiras punham um pranto lento; e logo, uma corda de vendaval corria mais furiosa, envolvia a casa num bater de janelas, redemoinhava, partia com silvos desolados.
“-- Está uma noite de Inglaterra”- disse Afonso, debruçando-se a espertar o lume.
Mas a estas palavras, Pedro erguera-se impetuosamente. Decerto o ferira a ideia de Maria, longe, num quarto alheio, agasalhando-se no leito do adultério entre braços do outro. Apertou um instante a cabeça nas mãos, depois veio junto do pai, com o passo mal firme, mas a voz muito calma.
“-- Estou realmente cansado, meu pai, vou-me deitar. Boa noite... Amanhã conversaremos mais.”
Beijou-lhe a mão e saiu devagar.
Afonso demorou-se ainda ali, com um livro na mão, sem ler, atento a algum rumor que viesse de cima; mas tudo jazia em silêncio.
Deram dez horas. Antes de se recolher fora ao quarto onde se fizera a cama da ama. A Gertrudes, o criado de Arroios, o Teixeira estavam lá cochichando ao pé da cômoda, na penumbra que dava um fólio posto diante do candeeiro; todos se esquivaram em ponta de pés quando lhe sentiram os passos, e a ama continuou a arrumar em silêncio os gavetões. No vasto leito o pequeno dormia como um Menino Jesus cansado, com o seu guizo apertado na mão. Afonso não ousou beijá-lo para o não acordar com as barbas ásperas; mas tocou-lhe na rendinha da camisa, entalou a roupa contra a parede, deu um jeito ao cortinado, enternecido, sentindo toda a sua dor calmar-se naquela sombra de alcova onde o seu neto dormia.
“-- É necessário alguma coisa, ama?”- perguntou abafando a voz.
“-- Não, meu senhor...”
Então, sem ruído, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara, entreabriu a porta. O filho escrevia, a luz de duas velas, com o estojo aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pai; e na face que ergueu, envelhecida e lívida, dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais refulgentes e duros.
“-- Estou a escrever.”- disse ele.
Esfregou as mãos, como arrepiado da friagem do quarto, e acrescentou:
“-- Amanhã é necessário que o Vilaça vá a Arroios... Estão lá os criados; tenho lá dois cavalos meus, enfim, uma porção de arranjos. Eu estou-lhe a escrever. É número 32 a casa dele, não é? O Teixeira há de saber... Boas noites, papá, boas noites.”
No seu quarto, ao lado da livraria, Afonso não pôde sossegar, numa opressão, uma inquietação que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro, escutar; agora, no silêncio da casa e do vento que calmara, ressoavam por cima, lentos e contínuos, os passos de Pedro.
A madrugada clareava, Afonso ia adormecendo quando de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando; um criado acudia também com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto, vinha um cheiro de pólvora; e aos pés da cama, caído de bruços, numa poça de sangue que ensopava no tapete, Afonso encontrou o filho morto, apertando uma pistola na mão.
Entre as duas velas que se extinguiam, com fogachos lívidos, deixara-lhe uma carta lacrada com estas palavras sobre o envelope, numa letra firme: “Para o papá”.
Daí a dias fechou-se a casa de Benfica. Afonso da Maia partia com o neto para a quinta de Santa Olávia.
Quando Vilaça, em fevereiro, foi lá acompanhar o corpo de Pedro, que ia ser depositado no jazigo da família, não pode conter as lágrimas ao avistar aquela vivenda onde passara tão alegres natais. Um baetão preto recobria o brasão de armas, e esse pano de esquife parecia ter distinguido todo o seu negrume sobre a fachada muda, sobre os castanheiros que ornavam o pátio; dentro, os criados abafavam a voz, carregados de luto; não havia uma flor nas jarras; o próprio encanto de Santa Olávia, o fresco cantar das águas-vivas por tanques e repuxos vinha agora com a cadência saudosa de um choro. E Vilaça foi encontrar Afonso na livraria, com as janelas cerradas ao lindo sol de inverno, caído para uma poltrona, a face cavada sob os cabelos crescidos e brancos, as mãos magras e ociosas sobre os joelhos...
O procurador veio dizer para Lisboa que o velho não durava um ano.
(Queiroz, 2006, p.45,50).
Descrições e análises comparativas
Uma das cenas que gerencia a interpretação é a que mostra a fuga de casa da personagem Maria Monforte, decidida a abandonar o marido Pedro da Maia. Monforte vai embora com o amante levando apenas a filha e um cofre de joias e diz à ama do menino que ia encontrar o marido. Ela deixa uma carta a ele com as seguintes palavras: “É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me que não sou digna de ti, levo Maria porque não posso separar dela.” (p.46). Ela foge com o amante, Tancredo, aproveitando umas das viagens que o marido Pedro da Maia faz para vender uma das propriedades da família, e passa dois dias fora de Lisboa.
Tal correspondência sugere muitas interpretações, ao pensar no livro. Ela afirma que ele deve esquecê-la, porque ela não é digna dele, mas, no entanto, foge com outro homem. Será, por exemplo, que ela não quis dizer que ele que não era digno dela?Pode ser uma negação que afirma o contrário. Voltaremos a isso mais adiante.
Apenas com a leitura do livro, podemos interpretar, por exemplo, que ela não o quer mais, não ama mais Pedro da Maia e por isso, foge com outro e tenta se justificar com o escrito do bilhete. Tenta amenizar sua culpa, diante do ocorrido, que de fato para a época, seria um escândalo. Ou ela realmente tem dor ao deixar família, filho, posição social, e marido, e diz que entende todo o motivo do repúdio da boa sociedade lisboeta para com ela, uma vez que era filha de negreiro, e oriunda dos Açores, o que a desqualificava diante dos olhos da boa sociedade lisboeta e principalmente de Dom Afonso.
Outra questão, é a hipótese dela apenas dar uma desculpa, como não tinha o que dizer, ela se justifica apenas para expor um motivo de sua fuga. O “não sou digna” ganha outro sentido, o de apenas preencher o motivo de sua atitude de fuga. E também para ele não pensar que não a mereceu e que não conseguiu segurar a esposa junto dele.
Já pela representação teatral da cena na minissérie, interpretamos que a personagem em questão vive um conflito, pois mesmo abandonando Pedro, ela quer que ele tenha pena dela, talvez para não a perseguir e matá-la, e fazer o mesmo com o amante Tancredo. Ou realmente porque tem dor no coração, e como sabia que Pedro era um homem fraco, ele poderia realmente cometer uma loucura com a sua partida. A filmagem fez dela uma personagem idealizada pela beleza e todos os outros dotes, e se a retratassem com a fuga sem dor e sofrimento, isso modificaria muito o sentido atribuído à personagem na minissérie.
Apenas lendo o livro, podemos também produzir uma interpretação de que ela é fútil, e resolveu viver com outro porque lhe oferecia uma vida mais aventureira, tinha um caráter mais forte que o de Pedro, e lhe dava uma vida mais mundana, fora de padrões sociais, à altura que os Maias exigiam. Ou ela se apaixonou mesmo por Tancredo. A formação televisiva do caráter dos dois personagens nos leva a interpretar que eles, Maria Monforte e Tancredo tinham mais coisas em comum. Por mais que a minissérie tenha mostrado Maria Monforte como uma personagem bela, uma dama cobiçada, a mulher mais linda que Lisboa já tenha visto, denominada por muitos como uma deusa, ela era constituída por caráter duvidoso, mas um bom coração, e não era oriunda de Lisboa, o que a fez sofrer muito preconceito. Além de ser filha de negreiro.
Em muitas outras cenas da minissérie, Monforte é vista como fêmea. Ela se relaciona sexualmente com Tancredo nas ruas de Lisboa, mas em relação a essa cena especificamente analisada, ela foi extremamente animal, fêmea e desumana ao escolher levar a menina, Maria Eduarda, e deixar o menino, Carlos Eduardo. A cena de Tancredo, na minissérie, se relacionando com ela pelas ruas de Lisboa é uma das que perturbam a imaginação de Pedro da Maia e aumenta seu transtorno nas vezes em que ele lê e relê a carta.
Nas duas materialidades, no livro e na minissérie, ela demonstra preferência pela menina, pega-a no colo, chama-a de bonequinha cor-de-rosa, e deixa o menino com a ama o tempo todo. Apenas o olha no colo da ama, não o quis amamentar, nem carregá-lo. Ela fala ao padre Vasques que não desejou ter o menino e que a gravidez fazia com que ela amasse menos o marido. Isso constitui o caráter da personagem como fêmea irracional, mulher apaixonada por outro, uma pessoa desgostosa com o casamento, que não está encontrando outra saída para resolver a situação.
Por outro lado, ela afirma: “o menino fica com ele”, o que sugere duas hipóteses: uma de que ela rejeita seu filho Carlos Eduardo da Maia, ou porque ela se preocupa com o fato de Pedro ficar sozinho, e para que isso não aconteça, ela deixa o menino com ele para crescer ao lado dele, para amenizar a sua atitude de abandonar o marido e o lar, além de fugir como amante. Em contrapartida, Dom Afonso fala que nem fêmea abandona a cria, o que a caracteriza como a mais irracional e terrível das criaturas.
A leitura do livro nos permite muitas interpretações, diferente da minissérie, que nos direcionam de acordo com a visão dos diretores e as interpretações dos atores. Ao analisar a atuação dos atores, também devemos ter em mente as interpretações de cada um, os jogos de luzes, o figurino, o cenário... Tudo o que foi criado, interpretado, pois o livro não apresenta muitas dicas, a não ser das joias de Maria, de sua beleza e de algumas características de Dom Afonso, como gordo, baixo, roliço e de barba branca. Isso pode se explicar pelo fato de o livro não ter sido escrito para ser uma peça, e sim um romance de cunho trágico, que expusesse alguns paradigmas e chocasse toda uma sociedade.
A personagem Monforte é retratada de forma diferente e coincidente na minissérie. Esta pesquisa tem como intuito analisar tais retratos e lançar hipóteses que fundamentam as diferentes possibilidades de interpretação de tais materialidades. Além disso, o intuito é focalizar a figura feminina, que com a presente personagem é bastante polêmica. Suas características tornaram-se ainda mais enfatizadas mostrando a força da mulher que pode ter atitudes que derrubam sociedades e famílias, por mais sólidas que sejam.
Há, junto à terceira análise, uma cena criada, que existe apenas na adaptação de Maria Adelaide Amaral. Esta cena retrata a parte em que Maria chora na cama, ao despedir-se de Pedro, quando ele se arruma pra viajar. Fica a dúvida do porquê ela chora. Pode ser porque irá abandoná-lo, nunca mais verá o menino ou perderá tudo o que o casamento lhe proporcionou, ou porque está arrependida da fuga e não tem como desistir, ou porque ela sente pena dele. Existe a hipótese de ela estar sofrendo, uma vez que resolveu deixar o filho, que ela justifica para que Pedro não sofra tanto e nem acabe sozinho, ou porque ela realmente não amava o filho, Carlos da Maia, uma vez que é nítida sua preferência pela menina.
Quando Pedro viaja para vender a “Tojeira”, propriedade da família Maia, nesta mesma manhã, Monforte pega seus pertences, a filha, e foge, deixando o filho com a ama. Ela o seduz fortemente pela negação, pelo que escreve na carta. Ao privá-lo de sua companhia, da menina, e principalmente por ele ser completamente apaixonado por ela, além das palavras usadas que não foram sem motivo. Pedro não suporta a sua fuga. Ele volta à casa do pai, Dom Afonso da Maia, e leva o menino, Carlos Eduardo.
Pedro, em sua paixão desenfreada, e sua obsessão por Monforte, não pensa em mais nada, a não ser na perda de sua mulher, aquela que seduziu-o, casou-se com ele e abandonou-o no auge de sua paixão. Maria Monforte era forte e sabia o que queria. Diferente dele, que só a obedecia. E na mesma noite, Pedro suicida-se.
O filme nos direciona para apenas uma interpretação, a de que Monforte sofre, de que é mãe, esposa, e abandona a casa com dor e arrependimento. Ela, afinal deixava marido, filho, posição social para viver com um homem pobre para sustentar-se com um cofre de joias dado pelo marido. A minissérie mostra o lado de Maria mãe, e não fêmea, ela chora, sofre ao despedir-se dele. A cena anterior, em que Pedro fala que vai sair cedo para vender a Tojeira, na realidade não existe no livro.
Na cena, ela acorda e chora ao despedir-se dele, pois ele passaria dois dias fora para essa venda. Ela pensa em sua fuga, sabe que ele vai sofrer, e sofre também, por ele, pelos filhos e por tudo do que vai se privar. Ela conhece a fraqueza do marido por isso renega-o, e afirma que não era digna dele e que ele devia esquecê-la. Pedro não suporta essa falta, essa privação, ele fala: “castigo é estar privado de Maria” (frase da série), o que mostra seu desespero e paixão insensata por Monforte. Tal atitude dela provoca o suicídio de Pedro da Maia na mesma noite.
Em função disso, Carlos Eduardo é criado pelo avô e cresce acreditando que mãe, pai e irmã estão mortos. Essa última cena analisada é crucial para o desenrolar de toda trama, principalmente para as consequências na família Maia. O diálogo presente na minissérie da cena acrescentada é o seguinte:
“-- Já vais?” - diz Monforte.
“-- É preciso!”- responde Pedro. Ela chora e o abraça.
“-- Não esqueça de que adoro-te”-diz Maria.
“-- Também te adoro meu amor!”- responde Pedro da Maia.
Nessa cena, ela está muito bela, vestida com uma roupa preta de dormir e os cabelos soltos e chora abraçada a ele, o choro de dor, falta de proteção, insegurança, e fragilidade que o seduz.
É possível interpretarmos tal bilhete de Monforte, ao lermos o livro, com a ideia de que na realidade, Pedro da Maia que não era digno dela, uma vez que tinha um gênio mais fraco, era mais dependente emocionalmente e jamais teria atitudes como as dela, de abandonar filhos, fugir da esposa com uma amante. Pelas cenas da minissérie, mais do que pelo livro, podemos perceber que ela o achava fraco, e com suas atitudes decididas e gênio forte, ela o dominava. E pensado dessa forma, tal bilhete poderia ser parafraseado da seguinte forma: “Esquece-me, pois não és digno de mim, parto para sempre com Tancredo e levo Maria porque não me posso separar dela.”
Como nessa sequência de paráfrases:
Não sou digna de ti
Não te mereço
Não sou filha de fidalgo.
Sou negreira.
Sou oriunda dos Pirineus
Não sou lisboeta
Sou mais vivida que você
Tive uma vida mais dura e outras experiências
Você é fraco
Não és digno de mim
Maria Monforte, então, já combinada com o amante Tancredo, arruma-se, pega a filha Maria Eduarda e deixa o filho com a ama. A ama estranha, pergunta se ela não ia junto. Maria diz que não, sempre nervosa e aos berros com as serviçais. Deixa Carlos com a ama, e fala a Tancredo: “O menino fica com ele”. Ela nos passa a impressão de mulher que sofre por abandonar marido, filho, família, casa e posição social. Sua atitude seria uma autopunição? Ela então deixa a carta a Pedro.
Quando Pedro chega a casa, vai logo perguntar à serviçal onde está a senhora Dona Maria, e a empregada responde:
“-- Ela não ia ter com o senhor?”
“-- O que estás a dizer, mulher?”
E Pedro passa a procurar pela esposa e acha a carta deixada por ela. Desde então, Pedro, transtornado, pega o filho e vai para a casa de Dom Afonso, em uma noite de chuva. Chega chorando muito, com impressão de queria morrer pelos acontecimentos.
O avô vê o filho chegando com o neto e diz o narrador na minissérie: “Uma alegria cruel o invade, Maria morrera talvez! A esperança do filho livre dos Monforte para sempre, trazendo nos braços os dois netos, toda uma geração para amar!” Ele pergunta o que se sucedeu, e Pedro sem conseguir falar direito, cai ao chão, molhado, e é afagado pelo pai. Ele fala “Tinhas razão meu pai! Tinhas razão! Fiquei fora de Lisboa por dois dias, Maria partiu com um homem, um italiano. Levou um cofre de joias e a pequena e disse à ama que ia ter comigo!”
“-- Mas a ama não estranhou?”
“-- Estranhou, mas o que ela podia fazer?”
“--E o menino? Ora Pedro não é para chorar, tens que reagir, afinal ela levou consigo a sua filha!”
Pedro diz que teve vontade de ir atrás deles e os matar, mas afirma que não sabia onde procurar.
Dom Afonso vai pegar o neto e Pedro fica chorando no chão, todo molhado, vestido de preto. O bebê fica sacudindo o guizo no colo do avô e arremessa longe. Afonso diz a Carlos: “Olhe, sou seu avô, é preciso amar o vovô!” E pede à ama que o leve e arranje o quarto mais arejado da casa. E volta a conversar com Pedro.
O filho pergunta ao pai se ainda se janta cedo em casa e vai para o seu quarto e pede ao pai que o mordomo leve uma taça de bebida.
Pedro então diz ao pai que poderia fazer uma viagem, naturalizar-se americano e de repente chegar a ser presidente ou então “rebentar! Rebentar! Rebentar!” O pai o aconselha a pensar nisso mais tarde. Ele mexe a cabeça sempre com olhar transtornado, com cara de louco e pergunta ao pai: “Ainda se janta cedo aqui, não é meu pai? Nós jantávamos às sete.
“-- Vamos para a mesa, filho - disse Dom Afonso - Vamos ver o que Monsieur Theodor preparou”.
“-- Vá na frente, meu pai! Eu vou descansar um bocado no meu quarto”. Diz Pedro com a expressão de louco e de quem sofre muito, o pai olha-o sempre meio desconfiado, com medo de suas atitudes.
“-- Ainda há cama lá, não há?”-pergunta Pedro.
“-- Está tudo como o deixaste.” - responde o pai.
“-- Peça ao Batista que me leve um cálice de genebra! Vá jantar meu pai, pelo amor de Deus! Vá jantar!”Suplica o filho, sempre com o olhar vago e sem olhar para Dom Afonso.
Pedro então, pega um terço e pergunta por que a sua mãe não o havia protegido diante da imagem de Nossa Senhora. “Por que não impediu que ela fosse embora? Dessa vez chorando bem mais! Mais uma vez pergunta “Por quê,minha mãe?”E arrebenta o terço deixando cair todas as continhas no chão. Sempre trêmulo e chorando. Aparece então, sua face transtornada de costas para a câmera e virado para o espelho. E diz; “Então, meu Deus! Onde estavas?”E respira fundo com raiva e rancor diante da própria imagem refletida no espelho. Pedro continua a brigar com Deus, com a cara demoníaca de dor “Onde estás? Onde estás?”E dá um grito forte: “Onde estás?”Nessa hora um estalo de chuva faz um grande barulho pela janela. As cortinas voam para dentro quarto. E Pedro chorando, coloca as mãos no rosto e grita com muita dor e sofrimento novamente: “Onde estás, Deus?”Deus!!”
Ele chora com as mãos na janela e abaixa o rosto. Deita-se e Batista diz que vai trazer mais uma bebida. Pedro diz que Batista não o compreende.
Batista lhe diz:
“-- Não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe! É o que se costuma dizer na minha terra”. Pedro responde:
“-- Na sua terra dizem muitas tolices! Meu mau não tem cura nem fim!”
Pedro, então, se deita ao chão e começa a escrever uma nova carta. O pai chega e diz:
“-- Estás aqui, filho? Os criados querem arrumar o quarto! Desce um momento!” E Pedro da Maia se levanta diante do pai, mas mais uma vez de costas para ele. E sai andando em direção à janela. O pai anda atrás dele e o toca nas costas e diz:
“-- Continuas molhado, filho!”
“-- Faz-me bem o ar!” - responde Pedro –“Faz-me tão bem!”
“-- Deixes os criados arrumarem o quarto!” - insiste o pai Dom Afonso.
“-- Desce um momento.”Suplica o pai e os criados vão arrumar o quarto. Os dois conversam na sala sobre como Pedro deveria ter sido criado, à moda inglesa. E o pai pergunta se ele não queria ir à França! A imagem de Maria com Tancredo vem à sua mente! E mais uma vez Pedro se transtorna, passa mal e tampa os ouvidos. O pai o acode e ele sai com a cabeça baixa. E vai até o piano.
“-- Estou realmente cansado, meu pai! Vou para o meu quarto descansar um pouco.”
O pai olha-o com os olhos arregalados e a barba branca, cortada à escovinha. Pedro vai até o quarto, e volta escrever, o pai vai atrás dele e o olha bem preocupado.
“-- Estou a escrever”- diz Pedro -“Amanhã é necessário que Vilaça vá a minha casa para despedir os criados e trazer os cavalos, ele mora no número 32, não é? O Batista deve saber.
“-- Por que não fazes isso amanhã, filho?”
“-- Eu quero agora! Boa noite, meu pai!”
“-- Boa noite, meu filho!”
Pedro continua deitado ao chão e Dom Afonso, agora de roupa branca deita-se em sua cama, com um livro nas mãos. Pedro se levanta e pega uma folha dentro de um livro no chão (a carta que estava escrevendo). O pai, com mau pressentimento, levanta, se senta na cama. O relógio toca e ele volta a se deitar. Reabre seu livro, em seguida em outra cena, Pedro pega a arma da família. Dom Afonso larga mais uma vez o livro na escrivaninha, e Pedro, na sala. Ele sacode o próprio corpo com a arma na mão. Anda para trás e o pai na cama, sempre inquieto.
Pedro olha o retrato da mãe, retira a carta escrita ao pai e deixa na escrivaninha. Olha para o retrato da mãe, aponta a arma para o coração, reaparece Dom Afonso tentando dormir novamente. Pedro, com a arma apontada, e o relógio a tocar, dá um tiro no coração, espirrando sangue no retrato de sua mãe. O pai ouve o barulho e se assusta na cama. Levanta-se e grita por Pedro, que ao mesmo tempo cai no chão, morto. E seu sangue escorre pela foto da mãe. Pedro cai no chão e seu pai, corre aos gritos pelo seu nome. O pai chora, apoia seu rosto ao colo, e diz “O que fizeste?” Uma criada aparece pela janela. E Domingos chega em seguida. O padre Vásquez chega à casa e diz que Pedro não poderá ser enterrado em nenhum cemitério de Lisboa por ter sido suicídio. O pai, então leva o filho para ser enterrado nas propriedades Maias.
Esta cena é o ápice da sedução de Maria Monforte por Pedro da Maia. E Ele se mostra totalmente desesperado ao perder a mulher amada e apenas com o filho não consegue reagir. Ele até delira e no ápice de seu transtorno emocional dá um tiro em si, mata-se acertando o próprio coração.
O estado emocional de Pedro na cena agregada ao seu suicídio, que não existe no livro, mas apenas no DVD, nos mostra como ele era dominado pela mulher, a sedução que Monforte exercia sobre ele o anula.
Em seu rosto luzia um ar de loucura constante, por não suportar a dor e a perda de uma mulher a quem ele era totalmente dependente. Ela, mais forte que ele, dominava-o totalmente. Ele, um dependente emocional de sua esposa. O pai lhe aconselha uma viagem, é claro que com boas intenções, a França, por que não?Pedro tampa os ouvidos, a possibilidade de encontrá-los deixa-o mais transtornado ainda, e escuta o barulho dos amantes em sua cabeça transando nas ruas de Lisboa. Afonso pergunta o que aconteceu, ele diz que nada, e que é para o pai pedir ao Batista que no outro dia fosse a sua casa despedir os criados e pegar os cavalos. E pede também um cálice de genebra. Pergunta se ainda se janta cedo e pontua que na sua casa o jantar sempre acontecia às sete horas. E suplica ao pai que vá jantar. Pedro, então, ainda molhado, pega um papel e escreve uma carta ao pai: “ao meu querido pae” e fica sozinho em seu quarto.
O pai janta, e se deita para dormir, mas não consegue, e gira na cama o tempo todo, como se pressentisse que algo errado aconteceria com o filho. Junto a esses movimentos do pai, o relógio toca o tempo todo, as horas passam e Pedro a procurar a arma. De repente, ouve-se um barulho de tiro. O pai Dom Afonso, salta da cama aos gritos e aparece Pedro caído no chão, com um tiro no coração, e o sangue jorrado no retrato de sua mãe. Afonso é o primeiro a chegar à porta e aos prantos, pergunta ao filho “o que foi que tu fizeste?” Os criados se levantam para acudir e se deparam com o cadáver de Pedro nos braços do pai. Ele, a princípio, não tem nenhuma reação.
O Padre Vasques é chamado, e os amigos da família chegam para velá-lo, como Dona Maria da Cunha e Vilaça, o administrador, depois Dom Diogo. E aí se inicia o conflito entre o Padre e Dom Afonso, que queria enterrar o filho e o padre afirma que nenhum cemitério de Lisboa enterraria um suicida. Os dois discutem e Dom Afonso critica severamente a santa igreja e os padres, indignado. O pai, então leva Pedro da Maia para ser enterrado em uma de suas propriedades.

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