2.1-A constituição do feminino e a Análise de Discurso
Do ponto de vista desse trabalho, a partir dos estudos da linguagem, esse mundo de valores pode ser pensado através da consideração da linguagem como fator fundamental, em relação com a história e a ideologia.
Passo a seguir para uma reflexão sobre o texto intitulado “Formas de individuação do sujeito feminino e sociedade contemporânea: o caso da delinquência”, de Eni Orlandi (2010), que discute em primeira instância, o que pode significar a palavra delinquência tendo em vista o sujeito feminino e seus processos de significação. Segundo a autora, dependendo de quem for ligado a essa palavra, o seu sentido muda. (Orlandi, 2010, p.15).
E os sentidos específicos para meu trabalho são os do sujeito feminino que vive em um mundo semelhante ao da delinquência, estudado pela autora. Para o meu texto, esses sentidos se tornam importantes uma vez que podemos comparar atos de mulheres ligadas ao crime com as atitudes “errôneas” da personagem Monforte. Ela também viveu, em algumas cenas de Os Maias, atitude de promiscuidade. Como tal foi vista pelo personagem Dom Afonso da Maia e pela madrinha de Pedro da Maia, Maria da Gama.
Tais sentidos são diretamente influenciados pela sociedade e pela história. (Orlandi, 2010, p.18). De fato, com a leitura desse trabalho de Orlandi, pude perceber sentidos ligados à Maria Monforte que mostram os costumes e o pensar da sociedade lisboeta de dois séculos atrás.
O texto de Orlandi aborda, mais especificamente, a delinquência atual, que infringe as mulheres com drogas, prostituição, e condições desumanas que a vida das favelas lhes oferece. É nesse contexto que surge a posição sujeito de boqueteira.
Segundo Orlandi, as boqueteiras não são prostitutas. Elas são meninas que fazem sexo oral em meninos na puberdade, os Falcões, para iniciá-los à vida sexual. E como o próprio apelido as nomeia, são especializadas nessaspráticas. Só existem através dos Falcões. Elas só existem pelo outro, retomando à proposição de Simone de Beauvoir. Essa é a realidade, elas são pagas para praticarem tais atos e esse é, geralmente, seu único meio de vida e de sustento. Há mulheres que fazem por prazer, mas penso que essa realidade para nós, figuras femininas, não é das melhores.
É possível dizer que as boqueteiras são uma versão moderna das antigas “cocotes”. A personagem principal de meu estudo, Maria Monforte, tem uma semelhança com as boqueteiras, uma vez que ela se torna“cocote”, como diz Eça de Queiroz, por prazer. Tornar-se prostituta foi uma das formas que Monforte encontrou de gozar a vida, mas no fim, de sobreviver. As boqueteiras, como Orlandi escreve,
“aceitaram essa condição e eu diria mesmo que elas valorizam isso. São elas que procuram os Falcões. A Eva [uma das boqueteiras] diz: “eu adoro isso, se eu pudesse, ficava o dia inteiro” (cf. Gabriela Leite que em palestra feita no Labeurb disse que as mulheres se prostituem não só pela pobreza, mas porque têm outras razões, menos explicáveis por mecanismos sociológicos. Por razões psicanalíticas, por exemplo). E há prazer aí investido” (Orlandi, 2010, p. 32)
Nesse ponto, tais mulheres não são nada idealizadas e, no caso de Os Maias, esta foi,a meu ver, uma forma que Eça de Queiroz usou para quebrar com a idealização romântica da personagem polêmica de Maria Monforte, que assim foi descrita no início do romance. Essa nova face de Monforte quebra com as expectativas de mulher perfeita e ideal, e apresenta uma mulher mundana, que justifica a desgraça que provoca com atitudes de fêmea-prostituta.
Monforte não se preocupou em sair da condição de prostituta, nunca deixou de ter vida mundana. Isso só mudou no fim do romance, quando ela morre, segundo o livro e volta muito doente para morrer nos Açores, como conta a minissérie. (Na versão da minissérie, a personagem afirma estar tísica e parecia ter contraído tuberculose. Ela diz também que estava morrendo e que voltara a Portugal para realizar seu último desejo: conhecer o filho Carlos Eduardo da Maia).
Segundo Orlandi (2010, p. 39) “a mulher é um ninho de contradições: a mulher tem que ser casta esposa e eficiente messalina”. O que põe em evidência uma relação em que os sentidos de “casta esposa” e “eficiente messalina” não se opõem, mas se constituem diferentemente, as duas posições coexistem. Essa é a “mulher-fêmea” segundo a autora. E essa observação detalhada da mulher caracterizada mais como animal do que como pessoa será de extrema importância para observar as posições e atitudes tomadas pela personagem Maria Monforte. Ela é encarada como bicho, mas vista também como criatura pior que um bicho, na forma como o personagem Dom Afonso da Maia a caracteriza quando afirma: “eu nunca vi fêmea abandonar a cria para viver com outro macho” (Amaral, 2001).
Outro estudo que discute sobre a mulher e que apresento aqui, é o livro Mulher ao Pé da Letra - A Personagem Feminina na Literatura de Ruth Silviano Brandão (2006). A autora, além de abordar o feminino, traz reflexões notáveis sobre o texto literário. A respeito disso, ela escreve:
“Sabemos que o texto literário é fascinante e deseja mesmo seduzir fazendo passar por verdadeiro e natural o que está na ordem do fingido e do maquinado. Esse poder de sedução é que sustenta o ato de ler, já que o olho que lê e a mão que toca o livro podem fechar-se e fechá-lo.” (Brandão, 2006, p.14).
Penso que essas palavras resumem todo o fascínio que me fez escrever esta minha dissertação. Para a análise do feminino, pratico dois tipos de leitura: a do livro e a da minissérie, um com imagens e outro que me proporciona a imaginação, até mesmo em minhas interpretações das cenas que compõem meu corpus.
Brandão introduz a visão de outra ciência: a psicanálise, que influencia sem ser essencial à minha dissertação, mas que auxilia todo e qualquer processo analítico nessa área:
“Talvez por causa de tal pretensão desmistificadora, a psicanálise possa ser um bom instrumental para se trabalhar com os textos literários que constroem uma certa imagem do feminino e da mulher. Imagem ilusória que, entretanto, vai circular como verdadeira, da mesma maneira que fazem todos os objetos sedutores, com o brilho do seu fascínio, criando representações que valem como um juízo de valor.” (Brandão, 2006, p.16).
Brandão aproxima a figura feminina do ideal romântico relacionada à questão do narcisismo:
“É nos livros e sua circulação que acontece o que nos interessa: uma miragem de mulher em que podem se alienar os leitores que acabam presos, como Narcisos, por uma imagem que se oferece como possível do desejo e se reduz ao desejo impossível.” (Brandão, 2006, p.16)
A mulher é diretamente ligada ao narcisismo em muitas literaturas, como é o caso de Os Maias, inclusive em muitas cenas da minissérie. Ao assisti-las, mais do que ler o livro, nos deparamos com uma personagem segura de si. Uma mulher que sabia do seu poder de sedução, consciente de sua beleza, persuasão e domínio sobre os homens. Foi através dessa característica fortemente notável em Monforte, que a trama se desenrolou e que os personagens masculinos do romance, como Pedro da Maia, Tancredo, Príncipe Manfredo, Alencar, e até mesmo Dom Afonso se enfatizam mais. Os primeiros apaixonados e o último com indignação, raiva e até mesmo ódio. Até mesmo Carlos Eduardo da Maia, o filho, na cena em que vê o retrato da mãe no diário do pai, diz: “era linda! Não me estranha que meu pai tenha perdido a cabeça!” (Amaral, 2001).
No exemplo de Brandão (2006) que cita o pé erótico de uma personagem feminina, podemos pensar em Maria Monforte e todo o seu corpo. Escreve Brandão:
“A personagem, descrevendo o pé, revela seu estado de encantamento e alienação, na medida em que aí fabrica sua ilusão, como se esse pé fosse seu duplo fálico, construindo a princesa e sua feminilidade, aí onde ele pode representá-la como criação simbólica.” (Brandão, 2006, p.22).
Para Monforte o seu corpo todo era fálico. Brandão explica que a personagem feminina é criada por fragmentos, colagem, sincretismo, ela é uma criação metonímica. São personagens formadas por restos, de partes que se juntam, feitas de frases, lembranças, desejos. São belezas constituídas de partes. Isso também explica a historicidade e a memória, conceitos da Analise de Discurso, os fragmentos que remontam a Monforte são os dizeres dos outros personagens que com ela conviveram.
As mulheres idealizadas de Os Maias, como Maria Monforte e Maria Eduarda, foram formadas por partes de idealização de seu criador, a primeira até mais que a segunda: elas têm tudo na beleza, tanto no físico como no caráter. Maria Monforte é uma colagem de tudo o que uma mulher ideal tem, aprimeira vista, fisicamente, para ser considerada como tal. Ela foi chamada no romance de Eça de Queiroz de “Juno Loira”, “que nunca havia sido tão bela”, e que “tinha toilettes únicas”, além de ter as “formas tão perfeitas de arrumar os cabelos”. Já Maria Eduarda, em sua primeira aparição em Lisboa, é retratada da seguinte forma:
“ela passou diante deles (Craft e Carlos da Maia), com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si, como uma claridade, um reflexo de cabelos louros e um aroma no ar.” (Queiroz, 2006, p.134).
E Craft exclama: “Très chic!”
Ambas são retratadas no romance com total idealização, mas com lados obscuros e sombrios, que o realismo impôs. A vivência das duas, que inclui a condição de “cocote”, me faz enquadrá-las como fêmeas, ou como diz Orlandi (1977), como “mulheres fêmeas”. Tais exemplos as qualificam, a meu ver, como criação metonímica, pois ambas foram feitas de colagens das ilusões e do nomear dos homens. Brandão ainda explica:
“Ora objeto decorativo, ora utilitário, ora inteira, ora parte, ora filha, ora mãe, ela pertence à personagem-narradora com quem ele se identifica, ocupando, então, o mesmo lugar, enquanto posição de um olhar que a cria.”(Brandão, 2006, p.24)
A sedução de Monforte se fez, muitas vezes, pelo que se dizia sobre ela, notadamente pelos homens. A esse respeito, Brandão também diz:
“Como mulher fictícia, criada pelo imaginário masculino, fantasma perverso, a princesa se confunde com a própria escritura sobre o feminino, que é trapaça, lugar de engano e de efeitos encantadores.” (Brandão, 2006, p.24).
A sedução de Monforte, baseada no fictício, no dizer e no imaginar dos outros personagens é uma idealização da mulher que se faz de forma muito natural e coincide com o objeto de desejo masculino. Não sabendo lidar com esse desejo, o homem acaba, muitas vezes, por calar a mulher e dá o seu discurso próprio sobre ela. É o que acontece com Monforte quando ela é apenas retratada. Como explica Brandão: “registrar a voz feminina via recurso masculino, aí a inscrevendo, como se fosse sua própria enunciação”. (Brandão, 2006, p.32).Esse feminino também faz parte do imaginário social, conforme observa Brandão, que ao mesmo tempo é presente e ausente, exalta a mulher e a castra, e a cala como sujeito desejante. (Brandão, 2006, p.41). A mulher nas literaturas também representa as mulheres ativas e as castas da sociedade. Minha personagem de análise era muito ativa, mas em diversas cenas foi calada, negada pela sociedade, estereotipada pelos homens, e fez parte do imaginário social.
Monforte se enquadra no feminino das literaturas, que, como explica Brandão, é uma corporificação de uma mulher fabricada literariamente. “Uma antimetáfora, uma concretude física e realizada com ato possível do texto.” (Brandão, 2006, p. 71). A personagem é realmente uma concretude do autor de Os Maias. Penso que Maria Monforte foi, realmente, uma mulher fabricada, um paradoxo da perfeição do romantismo e da quebra do idealizado com a presença do realismo. Ela foi e, é como afirma a mesma autora, “ilusão do eterno feminino, a corporificação, a concretude física, realizada no ato possível do texto” (Brandão, 2006, p.71).
Já o homem, para a mesma autora, “é aquele que aprende, penetra no feminino, e metaforicamente, realiza a fusão dos mistérios do saber e da natureza do feminino.” (Brandão, 2006, p.88). Penso que o homem é quem tem a mulher como desejável, e para ele penetrar nos mistérios da mulher, precisa muito mais do que desvendar e ser desvendado e realizar sua grande conquista. Brandão ainda explica:
A fantasia perversa de assujeitar o outro, a ponto de anulá-lo é realizada no ato de anunciação. O narrador fala de um lugar que se supõe ser o da mulher desejosa de se anular no desejo do outro, e não de ser outra, ou de ser alteridade.” (Brandão, 2006, p.104)
É interessante notar que, no romance Os Maias, esse ato de anulação do outro também está presente em relação a Pedro da Maia no excerto em que Maria Monforte se nega a ele, deixando-lhe um bilhete “Esquece-me que não sou digna de ti (...)” (Queiroz, 1888, p.46). Ela anula o sentimento de Pedro, a ponto de lhe causar o suicídio. E Pedro anula-se ao extremo diante da amada, a ponto de nada mais lhe fazer sentido. Na minissérie, ele ainda fala: “Não existe vida sem Maria” (Amaral, 2001). É a confirmação de sua anulação, dependência da figura feminina amada, e como afirma Dom Afonso, naminissérie: “o homem que não governa seus sentimentos não governa sua vida!” (Amaral, 2001).
Para melhor definir Pedro da Maia, Eça de Queiroz ainda descreveu, na primeira cena que ele a vê:
“Pedro da Maia amava! Era uma paixão à Romeu, vindo de repente numa troca de olhares fatal e deslumbradora, uma dessas paixões que assaltam uma existência, a assolam como um furacão, arrancando a vontade, a razão, os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abismos” (Queiroz, 1888, p.26).
Maria também pode ser designada como figura
“dicotômica bem masculina, bem característica das sociedades patriarcais: a divisão das mulheres em categorias antagônicas como angelical e demoníaca, pura e devassa, honesta e desonesta.” (Brandão, 2006, p.110).
Isso me faz lembrar a cena em que Pedro diz à Maria na minissérie de Maria Adelaide Amaral: “És um anjo!”E logo nas próximas cenas, ela o trai com o amante e não faz cumprir o que havia falado a Pedro. Posso continuar seguindo o raciocínio de Brandão sobre a questão paradoxal da anulação e da idealização da personagem feminina, como em Monforte, através do falar dos personagens masculinos:
“Na linha dos tradicionais romances masculinos que falam de mulher, de um lugar que não é o dela, pois neles o desejo feminino é a sua própria anulação.” (BRANDÃO, p.111).
Brandão afirma que na representação literária da figura feminina existe o objeto de amor narcísico, que é caracterizado pela imobilidade e fixidez, onde a sombra da amada não pode estremecer para não deformar. (Brandão, 2006, p.113). O narcisismo está presente em cenas em que Maria Monforte se faz, por saber-se uma figura sedutora e essa postura é nítida na paixão desenfreada de Pedro por ela. E as palavras de Brandão sobre essa característica sintetizam algumas atitudes de Pedro em relação à Monforte:
“Nesse lugar emoldurado e delimitado, a mulher se constitui como personagem e como fantasma masculino, coincidindo sua face com a face que a contempla, jubilatoriamente. Aí, ela é a possibilidade do impossível do amor, coincidência dos pares, enquanto os parceiros se julgam numa relação a completar, simétrica, de perfeita completude.” (Brandão, 2006, p.113).
Penso, ao ler essas palavras, na mulher mais uma vez representada como desejosa e desejada pelo homem. Como explica Brandão: “A mulher é, então, o Outro para o homem, aquilo que ele não reconhece: seu inconsciente.” (Brandão, 2006, p.134).
A figura feminina, de tão polêmica que se mostra, tem sua vida, muitas vezes breve, nas literaturas: Monforte some pela Europa após sua fuga, com receio de que fosse pega pelo sogro ou pelo marido traído e morta por estar com o amante e também de que Dom Afonso lhe tomasse a filha, que era a real intenção do patriarca. A justificativa que o avô dá ao neto Carlos por ele não conhecer a mãe é justamente que sua irmã e mãe estavam mortas: “Sua mãe está no céu do senhor abade.” (Amaral, 2001) Ou também o próprio Carlos: “Minha mãe e minha Irmã estão mortas, as duas em duas sepulturas distantes no estrangeiro” (Amaral, 2001). E esse romance trágico também representa o que Brandão diz sobre o fim de uma personagem feminina muito polêmica:
“Estamos verificando, também, que nos romances e contos analisados, se está sempre encenando a morte da mulher. Figura idealizada ou marginalizada, a mulher se mata, ou se mata a mulher, ou morre a mulher, ou é morta a mulher, na superfície mesma da escrita. De algum lugar do texto, produz-se uma morte e essa morte é realizada pelo sujeito da escrita, o sujeito da enunciação, que é como dissemos, antes um efeito da escrita, um lugar, do que uma subjetividade.” (Brandão, 2006, p.154).
Continuando pela visão da autora, a mulher é sempre delegada de voz alheia, um produto das sociedades patriarcais. Ela é vista como construção, fantasia e efeito da enunciação de quem pronuncia dizeres sobre ela. Isso também é atribuído à Monforte, que foi fruto dos dizeres dos homens. O feminino exerce, a meu ver, ainda muito fascínio sobre o masculino pelo que ainda não foi descoberto, pelo que já se descobriu, constatou e o que se desconfia.
Poderíamos ter uma família Maia formada por figuras matriarcais e um questionador feminino e devo questionar-me se fizer o mesmo com meu leito. Causaria o mesmo impacto? Será que a personagem feminina após abandono, se mataria? Será que o personagem masculino seria tão severamente punido pela sociedade? Será que ele seria tão repudiado? São questões que deixo para a reflexão de meu leitor e, quem sabe, para novos estudos. Valho-me do questionamento de Brandão para concluir: “... nunca se diz tudo sobre esse não - todo, que é a mulher, sempre mais e mais aberta a novas construções, tecidas de mais e mais um significante.” (Brandão, 2006, p.161).
Outra forma de desejo ligada ao feminino na literatura é a vingança. As mulheres tornavam-se objeto de desejo do outro sexo, em guerras. “Elas eram lugar de penetração e violação onde o inimigo gozava sua vitória”. (Brandão, 2006, p.165). Na Grécia antiga, o homem que vencia um duelo casava-se com a esposa do rival. Isso inclusive é retratado na tragédia grega “Édipo Rei” de Sófocles, em que o filho casa com a própria mãe, após matar o pai. E foi também retratado, mas de forma muito sutil em Os Maias, quando relatam que Tancredo havia morrido num duelo por causa de Maria, e que o vencedor ficou com ela. A mulher sofre violências pelas atitudes dos homens, por proteção excessiva e zelo: “... pretendem idealizar a mulher e acabam calando-a e petrificando-a, o que se revela como uma das diversas formas de violência e de morte.” (Brandão, 2006, p. 166). Toda figura feminina com seu poder de sedução, emana também perigo e estranheza como signos de uma feminilidade atraente e perigosa.
“Ela se ‘fantasia’ de mulher, enfeita-se, perfuma-se, sentindo-se, sem seus adornos, despojada de sua condição feminina. É como se deixasse de existir sem seus vestidos bonitos e caros, com enfeites que brilhavam à luz do sol.” (Brandão, 2006, p.168).
A questão do falo, discutida por Simone de Beauvoir (1987), também é discutida por Brandão (2006), mas de maneira diferente. Brandão afirma do ponto de vista psicanalítico, que a mulher faz de seu próprio corpo uma imagem fálica, cuidando particularmente dele, da imagem dele, como afirma a autora, “de tal forma que esta chega a adquirir o valor do falo” (Brandão, 2006, p. 169). A autora explica que essa atitude justifica-se pelo fato da mulher ser desprovida de pênis e do seu signo identificatório. E como recompensa dessa falta, a mulher age com exibicionismo fálico, exibindo uma beleza que erige toda para ser olhada e admirada.
Talvez isso realmente se justifique. A meu ver, os atos de sedução são muito mais visíveis nas mulheres do que nos homens. Mas penso que os homens também reagem assim com as mulheres. Eles também buscam o que não têm nas mulheres. Não concordo plenamente que a falta de falo faça asmulheres mais desejosas que os homens. As mulheres também atraem seus parceiros através das características que elas possuem e eles não. Isso não caracteriza um sentimento, mas uma atração animalizada, entre homens e mulheres, uma atração que se justifica pelas diferenças.
É evidente que “na medida em que se desconhece a verdade sobre a mulher, mais se fala, mais se escreve a seu respeito”. A mulher é motivo de constante curiosidade das pessoas e dos homens. Brandão afirma ainda que “o humano não para de querer falar daquilo que não pode dizer.” (Brandão, 2006, p. 175). E esse não poder dizer, por muitos anos, foi sinônimo do feminino. Muito da visão sobre a mulher da época em que o romance que analiso foi escrito passa por esse ponto.
O admirar desses detalhes faz o homem ficar seduzido:
“A todo o momento examinava os sapatos antigos que calçava,as velhas roupas sem graça, meus modos exatos, meu sorriso sem juventude- e vinha-me uma curiosidade doentia de saber como se trajava Nina, como aprendera a discernir e escolher aquelas coisas, seus hábitos, o que nela tanto atraía os homens. Foi esta curiosidade que me revelou a presença tácita do Demônio.” (Brandão, 2006, p.192).
O fato de examinaras roupas, as graças, remetem às atitudes de Monforte em que Pedro da Maia a admirava, e a todo o charme que ela usava para seduzir os homens. Maria Monforte foi essa mescla de mulher bela, sedutora, cheia de graça, e, ao mesmo tempo, por outro lado, de interpretação demoníaca: uma mulher sedutora e até perversa, que fugiu e seduziu homens sem nunca amá-los de verdade. Maria teve também muitos parceiros, amantes, e jogos amorosos, e sobre isso Brandão também escreve:
“É olhando o jogo amoroso dos parceiros que ela vai se conhecer como mulher. Pelo menos, vai conhecer o seu próprio desejo de ser desejada e desejar, como uma mulher.” (Brandão, 2006, p.192)
Para finalizar as colocações sobre a imagem do feminino em outras literaturas, Brandão compara o corpo da mulher à morte, pois algo em seu corpo resiste ao fálico, seu sexo resiste ao sexo, e isso a mata como mulher. (Brandão, 2006, p.200). Isso também foi perceptível no romance trágico de Eça de Queiroz: Maria Monforte, ao ver que Pedro era mais fraco do que ela, logo arranjou outro por quem se interessar; seu corpo esteve ligado à morte, antes do marido, depois do amante e, no fim do romance, dela mesma. Até mesmo no momento em que ficou sumida, pois foi dada como morta, houve uma morte- fuga por seus erros e excesso de sedução. Podemos relacionar todas as mortes do romance, ligadas diretamente a ela e ao seu sexo, que gerou filhos, que, separados, não sabiam ser irmãos e mais tarde mantiveram um relacionamento culminando na morte do avô. Um desencadear de mortes, sofrimento e desencontros causados pela sedução de Maria Monforte.
3-Algumas leituras nas áreas do teatro, cinema, televisão, literatura e análise de discurso.
Tendo em vista minha pesquisa sobre a versão de Os Maias como minissérie, apresentarei alguns conceitos vindos dos estudos teatrais, como cena, roteiro, montagem, etc., através do Dicionário de Teatro de Pavis (2008).
O conceito de cena se faz fundamental em meu trabalho, uma vez que é constituinte da materialidade específica do objeto de minha pesquisa: a minissérie. Segundo Pavis,
“cena deriva do grego skêne, que significa barraco ou tablado. Era no início do teatro grego, a barraca ou a tenda construída por trás da orquestra. O skêne desenvolve em altura, contendo o theologeinon, ou área de atuação dos deuses e heróis, e em superfície com o proscenium, fachadas arquitetônicas, que é o ancestral do cenário mural e que dará mais tarde o espaço do procênio. O termo cena conhece, ao longo da história, uma constante expansão de sentidos: cenário, depois o local da ação, segmento temporal, no ato e, finalmente, o sentido metafísico de acontecimento brutal e espetacular (fazer uma cena para alguém)”. (PAVIS, 2008, p. 2)
Em sequência, tal significado remete-me ao da ação. Um dos fatores que norteiam a cena é a ação, que, segundo o Dicionário Robert (s.d.) apud Pavis (2008) “se explica de forma metalinguística como sequência de atos e fatos que constituem o assunto de uma obra dramática ou narrativa, essa, muitas vezes, constitui uma adaptação” (p. 2).
A adaptação, de acordo com Pavis, “é a transposição ou a transformação de uma obra, de um gênero em outro (de um romance em uma peça, por exemplo)”. (p. 10). E isso acontece em minha pesquisa, que trabalha com a transposição de um romance escrito para uma filmagem, em uma minissérie.
Tal adaptação, ou também dramatização, tem por objetivo transpor os conteúdos narrativos (a narrativa, a fábula), que são mantidos de maneira mais ou menos fiel, com diferenças às vezes consideráveis, como a inclusão ou a exclusão de cenas do texto original.
Em Os Maias, na adaptação para a minissérie de mesmo nome, há diversas cenas incluídas. Uma delas, por exemplo, é a que ocorre antes da fuga de Maria Monforte, dos diálogos entre ela e Pedro da Maia e que só aparece no livro como um relato do personagem Pedro ao seu pai, Dom Afonso.
Pavis (2008) ainda explica que isso ocorre enquanto a estrutura discursiva conhece uma transformação radical, principalmente pela passagem a um dispositivo de enunciação inteiramente diferente.
Além das definições anteriores, considero outra muito importante: a de roteiro, que é basicamente um escrito a partir do qual toda adaptação se baseia e liga a obra-base com a nova, pronta para interpretação. Segundo Pavis (2008), roteiro é “um dos fatores que direcionam a adaptação de uma obra literária para uma obra cinematográfica, série, filme, novela.” (p. 347).
Assim, com base no autor, é possível dizer que o roteirizar é uma forma de movimentar os sentidos, incluindo e excluindo cenas da literatura, interpretando os escritos de um livro e dando vida às cenas apenas retratadas. Ou seja, isso explica, a meu ver, exatamente o que Maria Adelaide Amaral fez com a obra de Eça de Queiroz.
O gênero drama é a base do material a ser analisado em meu trabalho com a minissérie. De acordo com Pavis, um poema dramático é o escrito para diferentes papéis e de acordo com uma ação conflituosa. (PAVIS, 2008, p.109).
Ligado à adaptação da obra, considera-se televisão-teatro e o teatro, como produto final de todo estudo e análise. A primeira materialidade é basicamente um teatro apresentado na televisão, onde o público só assiste teatro sob a forma de uma transmissão, gravação ou um vídeo gravado. (PAVIS, 2008, p.397). Por sua vez, o teatro, se explica pela “reprodução que visa usar todos os recursos artísticos disponíveis para representar um espetáculo que apele a todos os sentidos e que crie assim a impressão da totalidade e de uma riqueza de significações que subjugue o público.” (PAVIS, 2008, p.394).
Segundo o autor, para telefilme ou teleteatro, a dramaturgia baseia-se em alguns princípios gerais, como a imagem legível, considerando as abstrações da tela. E em seguida, o autor recorda a estetização e a abstração dos elementos do cenário e do figurino, além do tratamento sistemático do espaço. O som, por sua vez é um elemento importante, que “por sua qualidade, dá efeito real, transmitida em voz harmonizada.” (PAVIS, 2008, P. 398).
O cenário, conforme o autor explica, aproxima o teatro do cinema e causa efeito real, sendo transmitindo em voz harmonizada. O cenário é também responsável pelo efeito do real, de clareza e de estética. Agregados a esses, merece destaque a Iluminação, que se define por ser um fator que acentua os contrastes e gere massas luminosas.
A montagem, por sua vez, joga com efeitos de forte pontuação, e rupturas dramatizadas. É também de suma importância, o jogo do autor, um elemento integrado e submetido ao dispositivo industrial e significante dos encenadores. (PAVIS, 2008, p.398).
Segundo Pavis, os atores são as figuras que proporcionam a interpretação de acordo com o diretor e com eles próprios. Os atores, ao dramatizar, tocam a emoção do público. Ao lado disso, o conceito de encenação, que resulta dos elementos precedentes, segundo Pavis, é a vasta cadeia de junção onde o enquadramento e sequencialização devem finalmente hierarquizar e correlacionar os componentes do telefilme. “Quanto mais sensível é a coerência, mais a dramaturgia televisiva prova sua especificidade.” (PAVIS, 2008, p. 399).
E por fim, o silêncio é um conceito fundamental para a constituição de algumas cenas, que explica a transposição de uma materialidade para a outra. Sobre esse conceito, o autor explica que ele:
“preenche o vazio produzindo uma fala que se origina na cena. É no teatro um componente indispensável para o jogo vocal e gestual do autor, seja ele indicado por uma rubrica (pausa) ou marcado pela encenação ou pelo autor.” (PAVIS, 2008, p.359)
Além desse modo de concepção do silêncio, apresentado por Pavis, também trabalharemos com o conceito de silêncio ou de silenciamento, que será discutido mais a frente, segundo a proposição de Eni Orlandi (2007). Esse conceito permitirá refletir em minhas análises como Amaral, ao silenciar algumas cenas do romance de Queiroz, nos mostrou outros sentidos que, interpretados por ela, produziram outros sentidos sobre a personagem Maria Monforte.
De acordo com Xavier (2007), a adaptação literária pode ser discutida em muitas dimensões. E um dos fatores analisados é a questão do quanto a interpretação do cineasta é fiel ao romance base. Isso é perceptível quando analiso as cenas da minissérie em comparação ao livro lido. Pude perceber que mesmo agregando e retirando representações, Maria Adelaide Amaral se manteve muito fiel à escrita de Eça; as falas do narrador são idênticas e as falas dos personagens também, inclusive falas marcantes no livro, como “Esquece-me que não sou digna de ti” (Queiroz, p.45) e também, “olha bem pra mim, eu sou seu avô, é necessário amar o avô” (Queiroz, p.46).
Na questão da adaptação literária, o que deve ser mais considerado é a interpretação do cineasta ao transpor o livro para o teatro para verificar se uma materialidade é fiel à outra. (Pavis, 2008). Nos romances analisados, é possível destacar algumas modificações, como ações de alguns personagens, o reaparecimento da Monforte no fim da trama na minissérie (o que não existe no livro), que modifica a forma como ocorreu a descoberta de Carlos da Maia e do avô quanto ao incesto dos irmãos. Para estudar tais transposições, como afirma Pavis (2010), é que devemos considerar a interpretação de um crítico. Pavis explica: “houve época em que era mais comum certa rigidez de postura, principalmente por parte dos apaixonados pelo escritor cuja obra era filmada.” (Pavis, 2010, p.61)
Porém, essa cobrança de fidelidade entre as duas obras deixou de ser fator de extrema importância. Conforme Pavis, o livro e a adaptação para uma filmagem são como resultados de processos de sentidos diferentes, uma vez que as adaptações são construídas com base em elementos como tempos, imagens, trilhas sonoras, falas e silêncios diferenciados. E sobre isso, Pavis ainda argumenta:
“A interação entre as mídias tornou mais difícil recusar o direito do cineasta à interpretação livre do romance ou peça de teatro, admite-se até que ele pode inverter determinados efeitos, propor outra forma de entender certas passagens, alterar a hierarquia de valores e redefinir o sentido da experiência das personagens.” (Pavis, 2010, p.62)
E com isso, a literatura é enriquecida com uma obra baseada em outra, que permite aos telespectadores e estudiosos da literatura, ter diferentes focos de análise. Além de proporcionar releituras em diferentes materialidades, pois a cada nova releitura e nova materialidade, a emoção se torna diferente.
E sobre isso, o autor ainda faz uma importante observação, que a meu ver, pode ser incorporada ao romance que analiso:
“A fidelidade ao original deixa de ser o critério maior de juízo crítico, valendo mais a apreciação do filme como nova experiência que deve ter a sua forma, e os sentidos nela implicados, julgados em seu próprio direito. Afinal, livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não têm exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, que esperar que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com o seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores nele expressos.” (p.62).
O que acontece muitas vezes, segundo o autor, é que ao discutir o problema da adaptação, nos empenhamos em examinar os recursos usados pelo cineasta ao tentar uma tonalidade, uma atmosfera, um ritmo que seja equivalente, enfim, uma tradução do que se admite como realizado no romance por meio da palavra. Uma pessoa que conheça as duas obras em questão sempre fará uma comparação entre elas. E sobre isso, Pavis ainda observa:
“Tomam o que é específico ao literário (as propriedades sensíveis do texto, sua forma) e procuram sua tradução no que é específico ao cinema (fotografia, ritmo da montagem, trilha sonora, composição das figuras visíveis dos personagens). Tal procura se apoia na ideia de que haverá um modo de fazer certas coisas, próprias ao cinema, que é análogo ao modo como se obtêm certos efeitos no livro, ‘modo de fazer’ que diz respeito exatamente à esfera do estilo. E essa analogia que sugere equivalências estilísticas estará apoiada na observação de um gradiente de ritmos, distâncias, tonalidades, que estão associados a emoções e experiências, bem como a um uso figurativo da linguagem que permite dizer que palavras e imagem procuram explorar as mesmas relações de semelhança (as metáforas) e as mesmas cadeias de associação e causalidade (as metonímias)”. (Pavis, 2010, p.63)
Tânia Pellegrini (2007), ao falar de cinema e de televisão, destaca a questão da imagem como elemento fundamental. Segundo a autora, a imagem tem seus próprios códigos de interação com o telespectador, e que são bem diferentes daqueles presentes em uma leitura simplesmente. (PELLEGRINI, 2007, p. 16). Isso foi perceptível em meu trabalho de análise em que a sedução de Maria Monforte foi notada primeiramente na encenação presente na minissérie e depois na leitura da obra. A interação com o espectador, constitutivo na imagem, permitiu que eu produzisse uma interpretação que não havia sido obtida previamente, apenas com a leitura no livro. A autora nos faz compreender como a imagem funciona como uma solução interpretativa:
“Pode-se nesse sentido, perceber uma conexão muitas vezes clara, outras vezes, apenas sugerida entre os textos ficcionais e os elementos das linguagens visuais. No que se refere à produção, contemporânea, por exemplo, há uma multiplicidade de soluções narrativas, presentes nos mais diferentes autores, que provavelmente se devem, entre muitas outras coisas, aos novos modos de ver o mundo e de representá-lo, instaurados a partir da invenção da câmera- primeiro a fotográfica, e depois, com mais força a cinematográfica. Essa multiplicidade (verificável por meio de análise cuidadosa de textos específicos, que não é possível elaborar aqui, engloba desde a construção prolixa de personagens infinitamente díspares e planas, até a presença tradicionalmente marcante de heróis problemáticos em conflito com um mundo hostil, desde a perspectiva da pintura homogênea e realista de ambientes e atmosferas, até a refração de espaços múltiplos e simultâneos, zonas ou territórios antigeograficamente ilimitados, traduzindo a sensação do caos globalizado; desde o tempo como duração, que se perde ou recupera pela memória, pelo sonho ou até mesmo pelo desejo, até a experiência de um eterno presente, pontual e descontínuo, ‘esquizofrenicamente’ mensurado pelos tempos das novas mídias, desde a propalada morte do sujeito e do desaparecimento do narrador, até sua presença ainda soberana.” (PELLEGRINI, 2007, p.17).
E a autora continua a explicar sobre o tempo, fator importante na narrativa, que pode modificar-se para dar outras interpretações aos romances.
Com relação a isso, posso, por exemplo, comparar a versão de Os Maias do livro e da minissérie levando em conta essa característica. A primeira cena do romance televisivo se inicia com a abertura do casarão, onde Carlos da Maia, filho de Pedro da Maia, nasceu. É com a sua volta, junto ao amigo João da Ega, que a história começa na minissérie. Ou seja, essa cena,que na realidade só existiu depois que toda a trama ocorreu, foi anexada ao romance em seu início.
E, sobre a questão do tempo, Pellegrini continua:
“o tempo é a condição da narrativa; esta acha-se presa à linearidade do discurso e preenche o tempo como matéria dos fatos organizada em formas sequencial. Se a matéria dos fatos, a ação, é vista como movimento, todas as formas narrativas – seja as propriamente literárias, como o romance ou o conto, a lenda ou o mito, ou seja, as formas visuais, como cinema e a televisão- estão direta ou indiretamente articuladas em sequências temporais,não importa se lineares, se truncadas, invertidas ou interpoladas. A diferença entre a literatura e o cinema, nesse caso, é que na primeira, as sequências se fazem com palavras, e no segundo, com imagens.” (PELLEGRINI, 2007, p.17,18).
Ainda sobre o tempo, Pavis (2008, p. 24) explica que, no cinema, podemos ver o tempo fluir e que isso nos faz representar e perceber o espaço de diferentes formas. O tempo deixa de ser estático e passa a fluido, ilimitado e misturado. Ele é construído e desconstruído pelo tempo. Isso ocorre, por exemplo, quando o casarão é mostrado na minissérie todo velho e largado, sem pinturas nas primeiras cenas e depois, na volta do tempo linear da narrativa, nas lembranças de Carlos e Ega, ele aparece reconstruído e novo. Vale acrescentar a esse respeito a observação de Pavis (2008) de que as narrativas do século XIX usam das técnicas de fotografia para dar verossimilhança aos seres e aos lugares.
Corpus, outro conceito muito importante, segundo Orlandi (2001), consiste no resultado de uma construção do pesquisador e que se organiza face à natureza do material e à pergunta, ambos organizados, feitos e estudados pelo pesquisador. E, segundo Orlandi (2007), são os textos que constituem a análise.
Por fim, a noção de personagem é uma noção essencial para minha dissertação, uma vez que toda ela se baseia em uma: Maria Monforte. E sobre o significado de personagem, destaco:
Personagem é um conceito bastante visado, uma vez que materializa a obra e as cenas por mim analisadas. Segundo o dicionário Aurélio (Ferreira, 2010, p.581), esse conceito deriva do Francês personnage, que quer dizer “pessoa notável, personalidade, cada um dos papéis de uma peça teatral que devem ser representadas por um ator.” E também cada um que figura numa narração, poema ou acontecimento. (Ferreira, 2010).
Pavis afirma que a noção de personagem tem deixado de ser o polo centrador desde o século XIX. Não é mais comum, segundo o autor, que uma obra tenha foco em uma personagem tipo. (Pavis, 2008). Mas no romance que analiso, Monforte é um polo centrador da trama, mas não a considero personagem tipo. Ela representa sim, muitas figuras da sociedade lisboeta de dois séculos passados, mas agregando muitas outras personagens em si própria.
A respeito da noção de personagem, Pavis ainda acrescenta: “o personagem deixa também de se caracterizar como o ‘herói problemático’ em conflito com o mundo, abrindo espaço para o anti-herói comum, passivo e indefeso, mergulhado num universo fragmentado e sem sentido, para quem o importante é, na verdade, o que percebe desse universo; a narrativa passa então, a ser o lugar onde se inscreve essa percepção: ‘os atos, os projetos, o passado das personagens contam menos do que as pulsões, as imagens, as impressões de que é constituído cada instante de sua vida.” (PAVIS, 2008, p.31).
Ao ler isso, penso em Pedro da Maia, que não foi propriamente um herói romântico. Ele foi romântico sim, “conquistou a mocinha” e “morreu gloriosamente por amor”, no ápice de sua sedução. Ele era passivo, indefeso, mas soube conquistar quem queria. Ele era sim um personagem em conflito, problemático, em função de toda a sua história de vida, como a perda da mãe, a vida enclausurada e angustiante ao lado do pai, e depois o amor reprimido pelo pai, inicialmente, e, posteriormente, pela esposa, além da perda da filha, como última consequência. A meu ver, ele teve seu momento de glória, unicamente em seu suicídio, mas que mostrou, também, o quanto era fraco.
Para finalizar esse capítulo, apresentarei algumas reflexões baseadas no texto “A Leitura em Abril Despedaçado, Equívoco e Acontecimento” de Onice Payer (2012), que ajudarão na obtenção de algumas noções e conceitos da literatura, do cinema, do teatro e da televisão, como a de personagem. Payer procurou, em seu texto, a partir de uma perspectiva discursiva sobre a versão cinematográfica de um texto, refletir sobre
“o papel da leitura em um acontecimento discursivo que interrompe a arcaica tradição de matar e morrer em nome da honra, configurada em uma sucessão de vinganças” (Payer, 2012, p.29).
A autora busca, a partir da observação do modo como a leitura se inscreve no filme, pensar se haveria uma fronteira clara na qual a leitura se separaria da narrativa. Sobre a questão da leitura inscrita em uma versão cinematográfica de um texto, a autora escreve:
“Tratar da questão da leitura inscrita em uma versão cinematográfica de um texto requer tomar em consideração o discursivo atravessando versões e materialidades, o que metodologicamente requer certos gestos analíticos em algo, diferentes dos procedimentos metodológicos comuns às análises do discurso. Falamos em sujeitos personagens ao invés de sujeitos indivíduos, operamos com cenas como recortes discursivos do filme, consideramos a paisagem como contexto de produção dos sentidos e mobilizamos a noção de universo semântico discursivo para remeter ao amplo conjunto de elementos composto por imagem, movimento, ritmo, palavra, silêncio e ação que compõe o magma textual da versão fílmica” (Payer,2012, p.30).
Vemos que, em seu trabalho, Payer propõe a noção de sujeito personagem, pois o “sujeito” que ela analisa não é apenas uma personagem, mas também não é um indivíduo real, que existiu de fato, e não é também um sujeito histórico. Do mesmo modo em que as cenas e as paisagens também são consideradas em relação a sua posição discursiva, a partir da qual também é possível propor a noção de universo semântico discursivo para refletir sobre diversos elementos, como imagem, movimento, ritmo, silêncio, etc. A autora ainda acrescenta para a sua reflexão a respeito da análise:
“a análise compõe-se tanto dos saberes/dizeres dos sujeitos personagens quanto de outros elementos produzidos por aquilo que nas imagens, ritmos, sons, cores, entre outros, fica suposto como o dizer de um sujeito narrador. Esse conjunto dá corpo no filme, efeito de memória do dizer, que no texto verbal, funciona nas formas sintáticas do pré-construído, como memória discursiva (interdiscurso). Além disso, imagens fílmicas materializam de um modo próprio um interdiscurso cinematográfico, enquanto gênero que tem sua memória.” (Payer, 2012, p.30)
Não é fácil transpor de uma materialidade para a outra, assim como não adianta apenas transcrever o que se passa em cada cena. É necessário um olhar crítico e de analista para examinar cada cena, cada gesto e expressão dos atores, além da mudança de materialidades como ocorre no romance Os Maias e sua adaptação. Essa reflexão de Payer inclui nos procedimentos analíticos da materialidade cinematográfica, os elementos que a compõem, que não são apenas os textos escritos que se lê, mas também o que se vê (imagens). Ela liga a análise aos saberes e dizeres de um universo discursivo (no caso do filme analisado pela autora, saberes e dizeres em torno do conflito de terras) e à memória discursiva, que permite pensar sobre um sujeito narrador que não é só o que relata o romance. No caso de Os Maias, os próprios personagens continuam a dizer sobre Monforte, mesmo depois de seudesaparecimento. Ao lado disso, o gênero cinematográfico produz sua própria memória. Payer ainda explica que, na análise de um texto fílmico, deve- se falar de ordem discursiva para indicar
“aquilo que por efeito de sentido aparece como sendo o que já está dado e assim já funciona no universo discursivo dos sujeitos-personagens desde ‘antes’ do início da narrativa, o que fica pré-construído como o ‘passado’ dos sujeitos, assim como o que constitui o presente.” (Payer, 2012, p.31)
Em sua leitura do acontecimento discursivo e do deslocamento de sentido, Payer retoma Pêcheux: “todo enunciado é intrinsicamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para um outro” (Pêcheux, 1991, apud Payer, 2012, p. 33). Esse processo, constitutivo da linguagem, é chamado de deslizamento de sentido e é produzido por efeitos metafóricos. Os deslizamentos de sentido possibilitam refletir sob a constituição da personagem Maria Monforte enquanto mulher bela ou enquanto indigna no livro e na minissérie, como nos exemplos a seguir:
Maria Monforte → nunca fora mais bela → tinha as toilletes que ofendiam Lisboa → mas é bonita → é um ducado de ouro novo Maria Monforte → não sou digna de ti → nem fêmea abandona a cria para viver com outro macho Podemos perceber, através das definições a respeito de Monforte a partir do narrador, a partir de outras personagens e a partir dela mesma, que essas definições produzem novos efeitos e deslocamentos de sentidos sobre a personagem em questão. São definições que jogam com a paráfrase, com a polissemia e com o efeito metafórico, tal como considera Orlandi (2007),importantes conceitos que explicam as adaptações e as diferenças de sentidos gerados ao transpor uma obra de um livro para uma minissérie. Ao usar dessas artimanhas que a língua nos proporciona, criam-se sentidos novos e interpretações possíveis para as cenas. Sobre a paráfrase e a historicidade, Orlandi observa:
“a historicidade está aí representada pelos dizeres (paráfrases) que instalam o dizer no jogo das diferentes formações discursivas [...]. Pelo efeito metafórico. Esse deslize, próprio da ordem do simbólico, é o lugar da interpretação da ideologia, da historicidade.” (Orlandi, 1996, p.81).
A meu ver, foi isso que nomeou de tantas formas a personagem Maria Monforte. Ela ocupa muitos campos de sentidos na minissérie e no livro. E cada personagem da trama forma o seu campo, tendo a polêmica personagem como foco.
A historicidade torna-se fundamental para minha análise, uma vez que boa parte das cenas em que a sedução, a beleza e a graça da personagem, são retratadas pela fala do narrador e dos demais personagens. Ela se significa e ressignifica através de descrições das pessoas que a viam e a conheciam; ela era chamada pelos homens de “Vênus” e por algumas mulheres de “cômicas”, por outras de “bela”. Ela produzia muitos sentidos na trama e divergia opiniões por onde passava. Tal conceito é fundamental para que eu entenda a análise de sua constituição, uma vez que a história não é retratada na minissérie de forma linear, e sim, como algo contado e representado, misturando fatos futuros, presentes e passados. Esse conceito está associado ao conceito de memória. Payer (2012) explica que os deslizamentos de sentidos das narrativas dão movimento aos elementos do universo discursivo e, ao modificarmos os campos de sentidos, do livro para a minissérie, outros de sentidos vão aparecendo e se formam imaginariamente.
A minissérie é uma materialidade muito visada no trabalho, pois ela constitui o corpus da análise. Segundo o dicionário Aurélio (Ferreira, 2010, p.508) minissérie é uma novela, ou filme produzido para televisão e apresentados em poucos episódios. Na minissérie serão analisados os gestos e os trabalhos corporais dos atores e sujeito-personagens no vídeo. Sobre isso, Orlandi afirma que
“o gesto de interpretação, fora da história, não é formulação (é fórmula), não é ressignificação (é rearranjo). Isto não quer dizer que não haja produção de autoria. Há. Mas de outra qualidade, de outra natureza. Porque a natureza da materialidade de memória é outra, distintas materialidades sempre determinam diferenças nos processos de significação.” (p.17).
No estudo da minissérie, é preciso ir muito além das falas dos personagens e dos diálogos propriamente descritos. É importante observar com mais detalhe as atitudes e a forma como Maria Monforte conduz suas seduções através dos gestos de interpretação presentes nas cenas. Para isso, é preciso observar as materialidades verbais (falas da personagem) e não verbais. Segundo Orlandi (1995), o verbal se refere à fala, à escrita e o não verbal ao não-dito, porém representado, lido nas entrelinhas, nas formas do dizer, do significar e do silenciar. A autora ainda afirma:
“É muito presente a ideologia de que o verbal é mais importante que o não verbal, no entanto, o silêncio dentro da A.D. nos permitiu compreender, entre outros, a importância da diferença entre o verbal e o não verbal” (ORLANDI, 1995, p.36).
Como consequência, pode-se perceber e aceitar que existe um silêncio, que é extremamente significativo. (Orlandi, 1995). A própria minissérie se fez em algumas cenas com o não dito do livro, como as que se encontra nas entrelinhas. Na cena em que Maria Monforte foge e deixa um bilhete negando seu amor a Pedro da Maia, em que ela o seduz pela negação (como apresentarei na última análise, que é a do suicídio de Pedro da Maia). Essa sedução se explica pela negação, uma vez que ele se mata por estar seduzido demais e por perder a mulher amada. Muito de sua constituição é analisada e concluída pelo não dito e pelo feito.
Por trás de qualquer personagem há um sujeito, inventado, no caso da ficção analisada, mas que por sua vez, representa um sujeito ou vários sujeitos que fazem parte de uma sociedade. É esse sujeito representado, que serve como denúncia, crítica e conhecimento da época e do lugar onde ocorre a história.
O sentido é outro grande norteador da interpretação. O livro,como se verá nos recortes analisados adiante, nos proporciona vários sentidos, várias interpretações sobre os acontecimentos, mas as representações dirigidas no filme, com acréscimos de cenas que não existiam no livro, dão uma direção à interpretação e tendem para um afunilamento de sentidos.
Segundo Orlandi (2012), sentido é o efeito que se produz na comunicação de dois interlocutores, é o que uma palavra reclama de determinado contexto, segundo Canguillen (1980), apud Orlandi (2012), sentido é relação a. Segundo Orlandi (2010, p.25) “na perspectiva discursiva, a linguagem é linguagem porque faz sentido. E essa linguagem só faz sentido porque se inscreve na história”.
Para o presente trabalho será visado o que é produzido entre o que se assiste na minissérie e o livro Os Maias, e o que a obra oferece para interpretação. O resultado da interpretação das cenas, em suas diferentes materialidades, proporciona os diversos sentidos.
O conceito de intertextualidade se faz também muito importante, uma vez que ele norteia minhas análises ao selecionar o que existe e o que não existe nas duas materialidades. Segundo Kristeva (2006), esse conceito se explica por um conjunto de enunciados que se cruzam e se relacionam, são textos que se transformam em outros, um diálogo entre os textos.
A memória é um conceito de extrema relevância para minha pesquisa, uma vez que é nela que se fundamentam algumas das análises de cenas e recortes sobre a presença da beleza e da sedução na personagem Maria Monforte.
Essas características aparecem como constitutivas da personagem a partir da materialização do que vai sendo dito sobre ela. As personagens da trama a caracterizam ora como a mais bela, ora como indigna. Ela é retratada muito mais pelo que se dizia sobre ela do que do modo como Monforte se autocaracterizava.
Payer (1999), retomando a concepção de memória discursiva da Análise de Discurso, lembra que o dito pelo sujeito já foi dito em outro tempo por outros sujeitos:
“O sujeito não é fonte do sentido; o sentido se forma na história através do trabalho da memória, da incessante retomada do já-dito, vai representar ‘a possibilidade de ler no discurso textual’ os traços da memória histórica tomada no jogo da língua.” (Payer, 1999, p.27).
A autora lembra também que a memória é constitutiva do sujeito.
A memória foi o grande fator que constituiu Maria Monforte na obra “Os Maias” e fez com que ela se tornasse viva e presente por toda a obra, mesmo depois de sua fuga e de sua morte. Percebe-se também uma tentativa de apagamento da memória sobre Monforte pelo personagem Dom Afonso da Maia, que tentou acabar com as lembranças dela para que o filho Carlos Eduardo da Maia nunca soubesse de sua mãe. No entanto, como se manteve viva nas falas dos personagens, ela não morreu na trama.
Payer (1999) também lembra a analista Maldidier (1990) para falar da memória discursiva, como uma memória que “se dá pela cadeia de outras formulações, de modo que se ligam umas às outras mesmo quando se quer apagá-las” (Payer, p.34).
Ainda sobre a memória, Orlandi diz:
“para que uma palavra faça sentido, é preciso que ela já tenha sentido. Essa impressão do significar deriva do interdiscurso- o domínio da memória discursiva, aquele que sustenta o dizer na estratificação de formulações já feitas, mas esquecidas, e que vão construindo uma história de sentidos” (Orlandi, 1999, p. 46).
Os conceitos de sentido e de silêncio são fundamentais para que eu possa saber quando uma cena é acrescentada na minissérie sem correspondência com o livro ou retirada dela, mas permanente no romance original. É interessante pensar que a minissérie produz sentidos outros ao incluir e excluir uma cena. E ao produzir novos sentidos, a minissérie produz um apagamento da possibilidade de várias outras interpretações.
Orlandi, em seu livro “As Formas do Silêncio” (2007), traz importantes considerações sobre esses conceitos fundamentais da Análise do Discurso. A autora afirma que
“os muitos sentidos e os efeitos de sentido definem-se nas relações das muitas formações discursivas e têm no silêncio o seu ponto de sustentação.” (Orlandi, 2007, p.15).
Ou seja, os sentidos e seus efeitos formam-se no discurso pelo que está dito e pelo que é silenciado; ao não dizer, ou apagar um sentido, eu produzo sentido. “E os sentidos, os não sentidos que se definem nas relações discursivas tem no silêncio seu ponto de sustentação” (ORLANDI, 2007, p.15).
No livro, Eça de Queiroz, ao produzir sentidos em seu romance apagou alguns que não couberam na história e deixou outros em aberto. Na minissérie,Maria Adelaide Amaral, ao adaptar o romance, incluindo uma cena e excluindo outra, deu à obra os sentidos novos de acordo com sua interpretação e, ao mesmo tempo, fechou outros sentidos.
Essas variações remetem ao que é para Pêcheux a definição de discurso: efeito de sentidos entre locutores. Sobre isso, Orlandi (2007) afirma que
“Compreender o que é efeito de sentidos, em suma, é compreender a necessidade da ideologia na constituição dos sentidos dos sujeitos. É da relação regulada historicamente entre as muitas formações discursivas (com seus muitos sentidos possíveis que se limitam reciprocamente) que se constituem os diferentes efeitos de sentido entre locutores.”(p.21).
Sobre a relação com o silêncio, Orlandi (2007) afirma que
“o funcionamento do silêncio atesta o movimento do discurso que se faz na contradição entre o “um” e o “múltiplo”, o mesmo e o diferente, entre paráfrase e polissemia.” (ORLANDI, 2007, p.17).
Nas cenas em que a personagem Monforte é constituída, o silêncio é, a meu ver, outro forte norteador. A começar por cenas em que ela silencia o sentimento de Pedro, ela o seduz pelo seu amor negado e apagado. Ao silenciar o amor de Pedro da Maia, abandonando-o, Maria Monforte produz sentidos nele, a respeito dela e nela também, como é mostrado na análise.
Além disso, o silêncio é notável nas interpretações da autora da minissérie para Os Maias. Novos sentidos se produzem ao silenciar uma cena, retirá-la da trama ou acrescentar algo a ela.
Orlandi ainda afirma: “Sempre se diz a partir do silêncio”. (Orlandi, 2007, p.23) Na minissérie, ao descrever Maria Monforte como mãe sofredora na cena que ela abandona a família, Amaral silencia a personagem como mulher que não ama, um animal que abandona a cria para viver com outro macho, como é significada em outra cena, pelo personagem de Dom Afonso da Maia.
Segundo Orlandi (2007, p. 24), “O silêncio é constitutivo, o que nos indica que para dizer é preciso não dizer (uma palavra apaga necessariamente as outras palavras).” Isso sintetiza todo o jogo de interpretação da adaptação de Maria Adelaide Amaral, ao escrever o romance como minissérie. Ao optar por uma interpretação, a autora apaga os possíveis sentidos que teríamos ao ler o livro.
Quando penso na composição da obra nas duas formas, concluo que não foi por acaso que a interpretação da autora da minissérie silenciou algumas interpretações possíveis no livro. Amaral retratou a perfeição na personagem Maria Monforte, a mais bela, a mais cobiçada, uma deusa, dando continuidade a essa ideologia presente no livro. Em função disso, ela jamais retrataria a personagem como uma mulher que não se importaria com os filhos e que não sofreria ao fugir com o amante.
A cena em que Maria Monforte chora ao despedir-se de Pedro da Maia,é uma das criadas para a adaptação. Essa representação silenciou diferentes impressões sobre a personagem e a ressignificou, como Maria Adelaide Amaral interpretou, diante de outras condições históricas de produção de sentidos.
É como se fosse necessário incluir, na minissérie, cenas de Monforte sofrendo com isso, sentimento que não é necessariamente dedutível nas passagens do livro.
Orlandi (2007) observa que “o dizer precisa da falta” e ainda “o silêncio tem seus modos próprios de significar.” A partir do silêncio, vários sentidos podem surgir. Ao mesmo tempo, o excesso de sentidos também produz seus silêncios. A inclusão de novas cenas só foi possível pela interpretação do silêncio do livro e pela possibilidade de usufruir de suas diferentes significações.
Ao lado disso, para dizer e significar, Monforte precisou silenciar-se e negar-se ao marido, ao filho, à sociedade e à sua própria vida.
Como reafirma Orlandi (2007, p.66), “o silêncio tem seus modos próprios de significar”. A autora ainda acrescenta que ele é tão ambíguo quanto o falar, não é transparente e se produz em condições específicas que constituem seu modo de significar. E por fim, o silêncio, assim como os sentidos,ambos são elementos constitutivos das interpretações. E tendo como base duas materialidades, o livro e a minissérie, concluo: “Assim como o texto não se esgota em um espaço fechado, o sujeito e o sentido também são caracterizados pela sua incompletude.” (Orlandi, 2007, p.77)

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