Capítulo I
Reflexões teórico-metodológicas
Para a realização deste trabalho, apresento algumas reflexões sobre o que já se produziu em relação ao tema da minissérie, e do feminino. Apresentarei também leituras teóricas diversas, de diferentes autores, na área dos estudos da literatura, teatro, cinema, televisão e análise de discurso.
1-A Adaptação de Os Maias
Farei aqui um breve percurso de reflexão sobre a constituição das cenas no romance Os Maias adaptado por Maria Adelaide Amaral, a partir de Hélio Guimarães (2003). Em seguida, serão apresentadas algumas breves observações sobre a adaptação, buscando refletir sobre elas do ponto de vista discursivo.
Guimarães afirma inicialmente que não é possível transpor uma obra a outra de forma perfeita. Isso se justifica pelo fato de serem campos diferentes. Penso que é nisso que a adaptação se baseia. Se ambas fossem idênticas, poderíamos dizer que seria apenas uma obra. E que o que as diferenciaria seria apenas a materialidade distinta (uma é livro e a outra é minissérie), mas constatei que isso nunca é possível. Uma vez que a adaptação se baseia em interpretação de outro autor, a inclusão e exclusão de cenas, os diálogos modificados são recursos louváveis que auxiliam na criação da nova obra, como justifica Guimarães:
“Em última análise, supõe-se existir uma leitura correta e única para o trabalho literário, cabendo ao adaptador descobrir o verdadeiro sentido do texto e transferi-lo para uma nova linguagem e um novo veículo. Essa visão nega a própria natureza do texto literário, que é a possibilidade de sustentar interpretações diversas e ganhar novos sentidos com o passar do tempo e a mudança das circunstâncias. Levada ao limite a ideia de fidelidade supõe que o programa de TV fiel ao texto literário de alguma forma possa substituí-lo, tomando o seu lugar e tornando-o de alguma forma obsoleto desnecessário, ideia incorporada por quem lê o resumo de um romance ou assiste à telenovela ou minissérie baseada no romance e acredita ter lido o romance.” (Guimarães, 2003, p.95).
Em diferentes leituras que incluíram essas duas materialidades, pude perceber muitas semelhanças e muitas diferenças entre elas. Por mais que Maria Adelaide Amaral tenha sido fiel ao texto de Eça de Queiróz, ela modificou vários sentidos, inclusive os das personagens.
Com análises comparativas pude perceber grande intertextualidade nas duas obras. É importante salientar aqui que intertextualidade consiste, segundo estudos de literatura, em uma conversa entre textos. São duas ou mais materialidades que tratam de um mesmo assunto, mesmo que com abordagens diferenciadas. Sobre isso, Guimarães afirma:
“Christopher Orr, um dos principais críticos aos discursos da fidelidade que dominavam os estudos das relações do filme ou do programa de TV com a fonte literária, propõe aplicar a noção de intertextualidade ao estudo das adaptações.” (Guimarães, 2003, p.95)
E o autor ainda acrescenta que sempre existe uma relação quase conflituosa entre TV e literatura.
Para tratar de adaptação, o autor baseou-se na minissérie Os Maias, tendo como foco as marcas do melodrama e fez uma análise da cena de abertura, onde aparece pela primeira vez o Ramalhete (uma das propriedades da família Maia; início da história; a casa onde a família habitava no ano de 1875): Esta cena é sobre a volta de Carlos da Maia acompanhado por João da Ega à casa em que nasceu e viveu apenas dois anos e onde Maria Monforte abandona o marido.
Sobre o romance, Guimarães inicia suas observações: “Os Maias, um dos grandes romances da língua e literatura portuguesas, percorre a história de três gerações de uma família da alta burguesia portuguesa presidida pelo patriarca Afonso”. Este, pai de Pedro e avô de Carlos Eduardo da Maia. A obra se baseia na vida de três varões, o avô Dom Afonso, o pai Pedro da Maia e o neto Carlos Eduardo. O avô, um patriarca conservador dos bons costumes, e intolerante a qualquer atitude que fugisse às regras do que era “correto”. O pai, Pedro, um homem totalmente dependente de Dom Afonso, seu pai, que, ao perder a mãe, só encontra novo sentido na vida, ao se apaixonar por Maria Monforte. E Carlos Eduardo, filho desse casal, que abandonado pela mãe e o suicídio do pai, passa a morar com o avô.
No romance adaptado para a minissérie, encontramos uma descrição minuciosa e abundante, que é repetida quase que fielmente em todo o DVD. Descrição essa, que, de acordo com Guimarães:
“imprime forte visualidade ao romance, o que levou um crítico a defini-lo como ‘uma galeria de quadros’, o livro contém os principais elementos que a ficção televisual historicamente tem procurado: narrativas caudalosas e repletas de acontecimentos e reviravoltas, forte carga sentimental e melodramática e um pano de fundo composto de períodos ou episódios históricos relevantes e reconhecíveis pelo espectador.” (Guimarães, 2003, p.96)
Com certeza, isso é bastante notável. A presença, em uma obra, de um suicídio, um incesto, tantos desencontros e a destruição de uma família, foram fatores muito chocantes. Esses elementos em abundância na obra se explicam pelo fato de que ela se configura como uma literatura romântica e realista, comum no século XIX.
Segundo Guimarães, essa obra,
“com seus enredos em torno de irmãos separados no nascimento, identidades trocadas, heroínas e heróis submetidos à arbitrariedade e crueldade de figuras paternas, tem fornecido matéria a um grande número de adaptações. (...)”. (Guimarães, 2003, p.97)
A família parece severamente castigada pelo destino. Na adaptação de Maria Adelaide Amaral, Dom Afonso até pronuncia essas palavras antes de sua morte: “não sei se é destino, ou que quer que seja essa força inexorável que fez cair por terra todas as minhas convicções, sou um homem traído pelo destino e pelas circunstâncias”. (2001). Isso comprova uma semelhança presente entre as duas materialidades: o fatalismo, o destino inevitável e o drama pelo qual passou a família.
Guimarães ainda diz:
“Nas duas obras, com a particularização das emoções num núcleo restrito de personagens, parece haver o desejo de produzir narrativas capazes de representar, por meio de dramas individuais, a história nacional.” (Guimarães, 2003, p.98)
Os personagens, figuras resultantes da curiosa conjunção de histórias e nacionalismo e drama doméstico, transmitem uma emoção e um sentimentalismo que chocam quem assiste à trama. Segundo Landi (s.d.), apudGuimarães, são as experiências de crises sucessivas que movem as narrativas melodramáticas, e isso é nítido ao lermos ou assistirmos a obra em questão.
Em Os Maias, primeiro Pedro perdeu a mãe, depois se apaixonou por uma mulher que não agradava ao pai, foi traído por ela, separado da filha e cometeu suicídio. Esse melodrama mescla o romantismo exacerbado ao realismo presente na trama toda. Podemos perceber o sentimentalismo nas ações dos personagens, principalmente no início da trama, em que Maria Monforte é idealizada. E o realismo vem quebrar isso, mostrando “o lado fêmea” e a postura com a “falta de caráter” de Monforte, personagem idealizada por uns e odiada por outros. Sobre essas narrativas, Landi (s.d.),apud Guimarães (2003), explica:
“as narrativas melodramáticas são movidas pela experiência de crises sucessivas, crises que envolvem rompimento de laços familiares, separação e perda, não-reconhecimento da posição, da identidade, e dos bens de uma pessoa. Sedução, traição, abandono, extorsão, assassinato suicídio, vingança, ciúme, doença incurável, obsessão e compulsão. Tudo isso faz parte do terreno familiar ao melodrama. As vítimas mais frequentes são mulheres ameaçadas em sua sexualidade, em seus bens ou suas próprias identidades. Muitas vezes órfãs, sujeitas à crueldade e à arbitrariedade de figuras maternas e paternas dominadoras, ou de seus substitutos, elas passam por vários julgamentos até que, se têm sorte, são resgatadas por um amante gentil e compreensivo”.(Landi, S.D.apud Guimarães,2003, p.98)
No caso do romance Os Maias, a mulher foi significada como a agente do melodrama e não a vítima, ao pensarmos na atitude de Pedro, que suicidou, e em Carlos, que foi abandonado. Por outro lado, ela também foi vítima de outros personagens e da sociedade na qual vivia na época. A sociedade portuguesa datada do século XIX, caracterizada por uma posição conservadora e intolerante, deu-lhe as costas, Dom Afonso odiou-a e qualificou-a da forma mais severa possível.
No entanto, os personagens não a encaram como vítima, nem a obra produz essa interpretação como dominante, mas nos dá abertura para a imaginarmos como tal. Monforte foi julgada constantemente pela sociedade, que castigou-a e tachou-a severamente de acordo com os costumes e as leis dessa época (final do século XIX). Ela foi vítima pelo fato de ser filha de negreiro, ter nascido nos Açoures e vivido no Brasil. Há, a partir dessa história de Maria Monforte, uma contradição que quebra a idealização da personagemno romance, agregando a ela atitudes errôneas e chocantes como abandono, traição e libertinagem. Sobre isso, Guimarães explica:
“Não é difícil associar os elementos típicos do melodrama televisual ao repertório de ficcional da televisão, nem identificar aí uma matriz literária. Da lista dos substantivos- sedução, traição, abandono, extorsão, assassinato, suicídio, vingança, ciúmes, doenças incuráveis, obsessão e compulsão-nenhum é estranho a Os Maias, cujo enredo baseado em irmãos separados no nascimento e [unidos] no incesto pode ser tomado como paradigma do romance oitocentista de enredo melodramático. Mas, se é relativamente fácil reconhecer os esquemas melodramáticos na armação do romance, sua manifestação na fatura do texto se dá de maneira sutil, que vale descrever antes de examinar como o melodrama literário foi recomposto pela narrativa televisual.” (Guimarães, 2003, p.98)
O romance é introduzido através da voz de um narrador que apresenta ao leitor como era o Ramalhete, um sombrio casarão, que testemunha a paixão de Pedro da Maia pela “negreira”, o primeiro desgosto sofrido pela família. O administrador Vilaça até fala que tais paredes sempre foram fatais à família Maia (Amaral, 2004). O Ramalhete é descrito como um local que possui varandas de ferro e azulejo com escudos de armas. A descrição milimétrica do cenário mostra o ar melancólico e sombrio que habitava o lugar com realismo. Quando escuto o narrador, é possível imaginar cada cômodo da casa, cada figura, como na parte que compõe a primeira cena da minissérie: a cena em que Carlos retorna após a morte do avô e escuta Dom Afonso conversando com Vilaça e com Dom Diogo: ”Isso de lendas e agouros, é só abrir de par em par as janelas e deixar entrar o sol”(Amaral, 2004).Sobre isso, Guimarães explica:
“a narração trabalha no seu subterrâneo as emoções do leitor, evocada ‘com a cadência saudosa de um choro’ em detalhes que sugerem abandono e desolação. O procedimento narrativo aparece condensado na lenda segundo a qual ‘eram sempre fatais à família Maia as paredes do Ramalhete’, lembradas já nas primeiras páginas por Vilaça, o administrador da família.” (p.98)
Com isso, podemos perceber a concretude das fatalidades em contraste com a descrição de um lugar tão bonito, idealizado e aparentemente bom para se viver. E por mais que Dom Afonso não acreditasse em crendices, fatais foram à essa família as paredes do Ramalhete. A minissérie inicia com um flashback: a primeira cena é o fim (e depois tudo passa a ser contado), bem diferente do livro, que apresenta uma narrativa de forma linear. E como recurso, além da narração, as imagens auxiliam nessa característica, como explica Guimarães,
“da esquerda pra direita, no qual se avista, por entre barras de uma grade e uma árvore de folhas escuras nervosamente agitadas pelo vento, uma grande casa cercada por jardins” (Guimarães, 2003, p.99).
O Ramalhete: polêmico lugar de tantas desgraças. E quanto às filmagens, usa-se o recurso de colocar a câmera parada diante de uma corrente e um cadeado, aberto em seguida por uma mão que se despe de uma luva negra. Percebe-se que são homens que com muita força e sofrimento abrem os pesados portões do casarão. Penso que podemos relacionar esse esforço braçal com a dor e a coragem do neto, ao abrir a casa onde sua família viveu grande parte de sua história e que proporcionou tanta desgraça a todos. O portão é aberto e dois homens encapotados irrompem em direção à casa: são os personagens Carlos Eduardo da Maia e João da Ega. Eles encontram no jardim, detalhes de estátuas, luvas e bengalas, objetos usados pelos componentes da família.
São visíveis os tons de ruína e abandono do Ramalhete, cujas janelas, balcões, telhados e escadarias são detalhados pela câmera até o brasão da família. Enquanto a câmera se fixa nos detalhes, nos pequenos gestos, como que apalpando a composição pesada do portão, do cadeado, das roupas das estátuas e dos ladrilhos, a música cria o clima emocional, sugerindo nostalgia saudade e mistério: os sentimentos vividos pelos dois personagens. Ega permanece mais assustado, mas Carlos quer recordar tudo o que sua família viveu e mostra claramente o valor sentimental que aquilo tem para ele. É claro que isso é apenas um recurso da adaptação. (Guimarães 2003).
“É pela música que o tom melodramático vai se instalando sob o realismo das imagens, numa feliz transposição para o vídeo de um procedimento que também é do romance, em que os contrastes semânticos e o ritmo das frases produz a cadência saudosa sob o descritivismo quase obsessivo.” (Guimarães, 2003, p.100)
Na minissérie, isso ocorre em quase quatro minutos de ausência de palavras, são usados apenas recursos de som e imagem. Após esses minutos, surge a voz grave do narrador com um texto que coincide (...) com o parágrafo inicial, por sinal, bem fiel a Eça de Queiroz, que diz:
“A casa que os Maias vieram a habitar no outono de 1875, era conhecida em toda Lisboa na Rua São Vicente de Paula e em toda rua das janelas verdes como Casa do Ramalhete ou simplesmente Ramalhete.” (p.13)
A minissérie, mesmo acrescentando cenas ao romance, permanece muito fiel ao texto ‘original’. Ainda que a adaptação de Maria Adelaide Amaral use do texto de Eça de Queiroz, frases e parágrafos inteiros, o recurso é incrementado por espaços narrados por meio da movimentação de câmera, música, efeitos sonoros, cenários, figurinos, adereços de cenas e posturas dos atores.
Voltando às cenas iniciais da minissérie, depois que a câmera percorreu o interior da casa inventariando os móveis num cenário em que o clima lúgubre contrasta com a sensualidade das cortinas esvoaçantes, Carlos da Maia e João da Ega entram e travam o primeiro diálogo: “A impressão que eu tenho era que antigamente havia mais horizonte. Não te parecia maior a faixa do rio que avistávamos daqui, Ega? Pergunta Carlos e o outro responde: “Eram nossos devaneios. Nossa pretensão de mudar este país fazia tudo parecer maior.” Esse diálogo, segundo Guimarães representa um deslocamento do espaço familiar para o país. E também sugeria uma ligação entre a decadência e a desilusão pessoal dos personagens em relação a eles próprios e ao mundo que gostariam de ter mudado, mas não conseguiram. Voltando ao tema mais central da tragédia, o autor continua:
“O drama ultrapassa o limite da família que empresta o título ao romance, para tornar-se também o drama de uma certa burguesia portuguesa fadada à endogamia, que afirma que o casamento deve ocorrer entre pessoas de mesma posição social, à esterilidade, à extinção de sua linhagem e cuja desgraça tem início com a mistura do sangue fidalgo de Pedro da Maia com o sangue importuno da filha de traficante de escravos, atividade que tem lastro histórico no projeto colonial português.” (Guimarães, 2003, p.101)
Esse drama ainda culmina em mais uma mistura consanguínea, representada pelo incesto entre os filhos da negreira e de Pedro da Maia. Com a separação dos filhos e a retirada da menina da vida do pai, por ações de Monforte, ocorre que Maria Eduarda fica sabendo apenas quem era sua mãe eele apenas quem era o pai. O relacionamento incestuoso castigou as duas gerações da família no livro: netos e avô, e, as três, na minissérie que inclui a mãe. O avô, Dom Afonso, na minissérie, termina seu diálogo antes de seu suicídio retratando-se como “um homem traído pelos destinos e pelas circunstâncias” (AMARAL, 2001). Esse é o ápice do melodrama. Dom Afonso sente-se vítima, ou assim é significado pela trama, diferente de Monforte, que foi julgada de outra forma. Mas isso “se justifica” fortemente por sua postura conservadora e preconceituosa, típica dos varões ricos e “guardiões dos bons princípios” da época. Ele se reconhece castigado pelos fatos os quais a família sofre, mas não se julga culpado por suas atitudes de repúdio à Monforte. Em sua mentalidade ele fez o certo para proteger seus descendentes e resguardar a tradição da família.
Toda essa reflexão, feita por Guimarães, é bastante rica para observarmos semelhanças e diferenças entre a obra de Eça de Queiroz e a adaptação de Maria Adelaide Amaral, notadamente em relação aos artifícios descritivos. Ou seja, se no livro encontramos descrições detalhadas sobre o Ramalhete, na minissérie essa descrição aparece em forma de imagens. Isso permite, por exemplo, pensar que a minissérie constitui as imagens como ilustrações/reproduções do que foi descrito no livro. Do ponto de vista do autor, isso funciona por meio da intertextualidade. Para Guimarães, não se trata de uma transposição porque para ele não há uma leitura correta e única de uma obra, sendo impossível uma transferência do sentido verdadeiro de um texto para uma linguagem diferente de um veículo diferente.
De uma perspectiva discursiva é possível dizer que, na versão de Os Maias da minissérie, a transferência de uma linguagem para outra funciona sob esse efeito de transposição, como se uma ou outra materialidade produzissem os mesmos sentidos. Desse modo, a minissérie apenas completaria, com imagens, os sentidos que já estariam descritos na obra. Mas o que podemos perceber é que, com essa outra materialidade, a minissérie produz sentidos diferentes com suas linguagens distintas e, ao mesmo tempo, esse efeito de transposição pelas imagens apaga possibilidades de outras leituras que produziriam outros sentidos. É como se a cena fosse uma representação perfeita das descrições do livro e que só pudesse ser aquela.
2-Algumas reflexões sobre a constituição do Feminino
O feminino em Maria Monforte é discutido neste trabalho de muitas formas: como fêmea, mulher, amante, namorada, mulher perfeita, ideal e pior que bicho. Trago em minhas reflexões a postura do feminino em diferentes épocas e sociedades distintas e suas atitudes como mulher, como fêmea, baseando-me na constituição dessa polêmica personagem, que, com sua sedução, modificou toda a história de uma família tradicional lisboeta escandalizando toda uma sociedade do século XIX.
Apresentarei aqui algumas ponderações sobre a constituição do feminino tendo como ponto de partida uma leitura de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir (1987).
Essa obra estuda o modo como a mulher é significada na sociedade do ponto de vista da biologia, da psicanálise e do materialismo histórico. Beauvoir levanta questões nunca antes abordadas por outros autores, revolucionando o modo de pensar sobre o sexo feminino. No início de sua obra, a autora observa que:
“Sem dúvida, a teoria do eterno feminino ainda tem adeptos; cochicham: “Até na Rússia elas permanecem mulheres”. Mas outras pessoas igualmente bem informadas – e por vezes as mesmas – suspiram: ‘A mulher se está perdendo, a mulher está perdida’. Não sabemos mais exatamente se ainda existem mulheres, se existirão sempre, se devemos ou não desejar que existam, que lugar ocupam no mundo ou deveriam ocupar. ‘Onde estão as mulheres?’“, indagava há pouco uma revista intermitente. Mas antes de mais nada: que é uma mulher?”‘“. (Beauvoir, 1987, p. 11).
Segundo a autora, todos concordam que há fêmeas na espécie humana, mas, ao mesmo tempo, dizem que a feminilidade “corre perigo”. Nesse sentido, ela acrescenta que “todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade.” (Beauvoir, 1987, p.11).
Uma das primeiras questões discutidas por Beauvoir no primeiro capítulo de sua obra, “Os Dados da Biologia”, são as diferentes formas de chamar o homem e a mulher. O homem se orgulha ao chamar-se e ser chamado de macho; em contrapartida a designação de fêmea para uma mulher, a diminui e a menospreza, perante ela mesma, o homem e a sociedade. Como explica a autora: “Na boca do homem o epíteto "fêmea" soa como um insulto; no entanto, ele não se envergonha de sua animalidade, sente-se, ao contrário, orgulhoso se dele dizem: ‘É um macho! ’” (Beauvoir, 1987, p.31).
Na leitura da obra de Eça de Queiroz essa diferença torna-se nítida e já caracteriza formas diferentes de pensar em relação ao homem e à mulher. Segundo Beauvoir, isso é proveniente muito mais do social do que do biológico. Mas apesar disso, o homem quer encontrar na biologia uma justificativa para essa diferença de tratamento. Segundo a autora, chamar mulher de fêmea pode nos remeter a uma imagem de óvulos abocanhando e castrando espermatozóides ou até mesmo a fêmeas que após o acasalamento matam seus machos, (Beauvoir, p.25) mostrando que, em muitos aspectos, a biologia poderia comprovar a maior resistência do feminino sobre o masculino.
Há, por outro lado - acrescenta a autora -a questão dos hermafroditas, que são possuidores dos dois sexos e se procriam por trocas, fecundação cruzada ou autofecundação. E mesmo eles possuem seus lados macho e fêmea, como a autora explica: “A separação dos indivíduos em machos e fêmeas surge, pois, como um fato irredutível e contingente.” (Beauvoir, p.27). Pelo que pude perceber, no livro de Eça de Queiroz e na minissérie de Maria Adelaide Amaral, essa separação funciona muitas vezes como fator de segregação e até de menosprezo de um personagem masculino por um feminino: “Nem fêmea abandona a cria pra viver com outro macho!” (Amaral, 2001).
Ao analisar mulheres mais idosas, Beauvoir declara: “Já se afirmou que as mulheres idosas constituem "um terceiro sexo", e, com efeito, não são machos e não são mais fêmeas, traduzindo-se amiúde essa autonomia fisiológica por uma saúde, equilíbrio, e vigor que antes não possuíam.” (p.51).
Penso que devemos considerar o fato de que a procriação em mulheres de idade elevada por não funcionar mais, desqualifica-as como fêmeas na sociedade, e consequentemente como mulheres. Como ainda argumenta Beauvoir:
“Vê-se que muitos desses traços provêm ainda da subordinação da mulher à espécie. Tal é a conclusão mais notável desse exame: é ela, entre todas as fêmeas de mamíferos, a que se acha mais profundamente alienada, e a que recusa mais violentamente esta alienação; em nenhuma,a escravização do organismo à função reprodutora é mais imperiosa nem mais dificilmente aceita: crises da puberdade e da menopausa, "maldição" mensal, gravidez prolongada e não raro difícil, parto doloroso e por vezes perigoso, doenças, são características da fêmea humana.Dir-se-ia que seu destino se faz tanto mais pesado quanto mais ela se revolta contra ele, afirmando-se como indivíduo. Comparada com o macho, este parece infinitamente privilegiado: sua vida genital não contraria a existência pessoal; desenvolve-se de maneira contínua, sem crise e geralmente sem acidente.Em média, as mulheres vivem tanto quanto o homem, mas adoecem muito mais vezes e durante muitos períodos não dispõem de si mesmas.” (Beauvoir, 1987, p. 58)
A autora nos apresenta um olhar pessimista sobre o ser mulher. No entanto, oferece pontos essenciais de reflexão sobre a personagem Maria Monforte, que é significada muitas vezes como fêmea, do ponto de vista tradicional da biologia, ou seja, como inferior ao macho. A personagem também é significada como feliz ou sofredora; como mulher que seduz; que é mãe ou que apenas gera, entre outras formas de nomeação. Ela é significada quase sempre pelos outros, pelo mundo masculino que enxerga o feminino como subalterno, inferior, mesmo quando Monforte é significada de maneira idealizada.O livro Os Maias,de Eça de Queiroz descreve Maria Monforte de forma muito delicada e idealizada em sua gravidez, que a fez bela e sedutora de forma singular:
“Nunca Maria fora tão formosa. A maternidade dera-lhe um esplendor mais copioso; e enchia verdadeiramente, dava luz àquelas altas salas de Arroios, sua radiante figura de Juno loura, os diamantes nas tranças, o ebúrneo e o lácteo do colo nu, e o rumor das grandes sedas.” (QUEIROZ, 1888, p.38).
Mesmo sendo uma obra realista, a personagem é idealizada. No segundo capítulo de sua obra, intitulado “O Ponto de Vista Psicanalítico”, a autora continua uma discussão a respeito do feminino e da postura da mulher como fêmea e como pessoa. O primeiro aspecto, que, a meu ver, merece atenção é a observação de Beauvoir, de que, de acordo com a psicanálise, “a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea” (Beauvoir, 1987, p.65). Uma mulher pode sim, ocupar a posição sujeito fêmea, por querer, por prazer, mas nem sempre. Às vezes, ela a ocupa por falta de opção, pela posição do marido, e do “macho” com quem ela convive. A posição da mulher ao longo da história sempre foi delicada, trajetória, por sinal, enriquecedora para meu trabalho. A autora ainda acrescenta que, desse ponto de vista psicanalítico, “não é a natureza que define a mulher: esta é que se define retomando a natureza em sua efetividade” (Beauvoir, 1987, p.65). Beauvoir se recorda da afirmação de Freud sobre uma diferença importante entre o homem e a mulher:
“o erotismo masculino localiza-se definitivamente no pênis, ao passo que há, na mulher, dois sistemas eróticos distintos: um clitoridiano, que se envolve no estágio infantil, e vaginal, que surge após a puberdade” (Beauvoir, 1987, p.67).
O sistema do estágio infantil torna-se mais interessante ao observar a postura da criança perante a mãe. Mas, para a mulher isso não é muito vantajoso, como continua a autora:
“Há somente uma etapa genital para o homem enquanto há duas para a mulher; ela se arrisca bem mais do que ele a não atingir o termo de sua evolução sexual, a permanecer no estágio infantil e, consequentemente, a desenvolver neuroses.” (Beauvoir, 1987, p.67).
Essa situação confunde um pouco a mentalidade da menina, que se espelha na mãe em tudo, mas em certos momentos quer ser mais parecida com o pai, e se sente inferior por não conseguir. Em casos, até enxerga a mãe como rival.
Com o amadurecimento de ambos os sexos, as práticas sexuais e o controlar dos ímpetos tornam-se bastante diferenciados. O autocontrole sexual é, às vezes para o homem, mais difícil do que para mulher. Para a psicanálise, explica a autora:
“no estágio auto-erótico, a criança liga-se mais ou menos fortemente a um objeto; o menino fixa-se na mãe e quer identificar-se com o pai; apavora-se com essa pretensão e teme que, para puni-lo, o pai o mutile; do “complexo de Édipo”, nasce o “complexo de castração”; desenvolve, então, sentimentos de agressividade em relação ao pai, mas interioriza, ao mesmo tempo, sua autoridade. Assim se constitui o superego que censura as tendências incestuosas; essas tendências são recalcadas, o complexo desaparece e o filho liberta-se do pai que, de fato, instalou em si mesmo, sob forma de regras morais.” (Beauvoir, 1987 p.67).
A autora observa que do ponto de vista dos homens, que é o ponto de vista que adotam os psicanalistas de ambos os sexos, as condutas de alienação são consideradas femininas e as condutas em que o sujeito afirma a sua transcendência são consideradas masculinas. Para Beauvoir, diferentedisso, a mulher é concebida hesitando entre o papel de objeto, de Outro, que lhe é proposto, e a reivindicação de sua liberdade. Ela afirma concordar com certo número de fatos da psicanálise, em particular os caminhos de fuga oferecidos à mulher, mas sublinha que não aceita em absoluto a significação freudiana ou adleriana, pois, diz ela
“a mulher define-se como ser humano em busca de valores no seio de um mundo de valores, mundo cuja estrutura econômica e social é indispensável conhecer: nós a estudaremos numa perspectiva existencial através de sua situação total” (Beauvoir, 1987, p. 78)
No início do capítulo “O Ponto de Vista do Materialismo Histórico”, Beauvoir (1987) afirma que “a humanidade não é uma espécie animal, mas uma realidade histórica.” (p.79).
Nesse capítulo, a autora dá ênfase à história e à parte mais política do assunto estudado em seu livro e nos apresenta outra visão sobre a mulher. A partir da leitura desse capítulo, pude perceber a mulher encarada mais como pessoa, sendo que a parte fêmea, por sua vez, é menos visada. A autora escreve do ponto de vista do materialismo histórico:
“a mulher não poderia ser considerada apenas um organismo sexuado: entre os dados biológicos só têm importância os que assumem, na ação, um valor concreto; a consciência que a mulher adquire de si mesma não é definida unicamente pela sexualidade.” (Beauvoir, 1987, p.79)
Beauvoir lembra que, biologicamente, o domínio da mulher sobre o mundo é menos extenso do que o do homem, e que ela é mais submetida à espécie. Mas salienta que “esses fatos assumem um valor muito diferente segundo o seu contexto econômico e social” (Beauvoir, p.79). E acrescenta que, na história humana, o domínio do mundo não se define nunca pelo corpo nu.
Ela mostra, de acordo com a perspectiva de Engels, como a história da mulher em A origem da família dependeria essencialmente da história das técnicas. Para essa discussão, Beauvoir remonta o que Engels diz sobre isso em sua história, começando pela Idade da Pedra:
“quando a terra era comum a todos os membros do clã, o caráter rudimentar da pá, da enxada primitiva, limitava as possibilidades agrícolas: as forças femininas estavam na medida do trabalho exigido pelo cultivo das hortas.
Nessa divisão primitiva do trabalho, os dois sexos já constituem, até certo ponto, duas classes; entre elas há a igualdade” (Beauvoir, 1987, p.80).
Segundo observa a autora, Engels vai considerar que a desigualdade começa com um desenvolvimento tecnológico que vai produzir mudanças no modo de trabalho e chegar à propriedade privada. Beauvoir escreve:
“Com a descoberta do cobre, do estanho, do bronze, do ferro, com o aparecimento da charrua, a agricultura estende seus domínios. Um trabalho intensivo é exigido para desbravar florestas, tornar os campos produtivos. O homem recorre, então, ao serviço de outros homens que reduz à escravidão. A propriedade privada aparece: o senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se também proprietário da mulher. Nisso consiste “a grande derrocada histórica do sexo feminino”. Ela se explica pelo transtorno ocorrido na divisão do trabalho em consequência da invenção de novos instrumentos (Beauvoir, 1987, p.80).
Segundo a leitura da autora sobre o trabalho de Engels, nessa família, a mulher continua oprimida, o homem reina soberanamente, dorme com escravas, possui amantes, é polígamo. A mulher pratica o adultério como punição ao homem. A partir do momento em que os costumes tornam a reciprocidade possível, a mulher vinga-se pela infidelidade e o casamento completa-se com o adultério. É a única defesa da mulher contra a servidão doméstica em que é mantida; a opressão social que sofre é a consequência de uma opressão econômica.
A autora observa que apesar da síntese esboçada por Engels assinalar um progresso sobre as outras perspectivas, os problemas mais importantes são escamoteados. Para Beauvoir, o materialismo histórico considera certos e verdadeiros, fatos que seria preciso explicar. Um dos pontos que a autora critica na obra de Engels a esse respeito é o fato de que “é impossível deduzir a opressão da mulher da propriedade privada” (Beauvoir, 1987, p. 83). A autora explica:
“Ainda aqui a insuficiência do ponto de vista de Engels é manifestada. Ele compreendeu muito bem que a fraqueza muscular da mulher só se tornou uma inferioridade concreta na sua relação com a ferramenta de bronze e de ferro, mas não viu que os limites de sua capacidade de trabalho não constituíam em si mesmo uma desvantagem concreta senão dentro de dada perspectiva.” (Beauvoir, 1987, p. 83).
Beauvoir continua sua leitura trazendo o caso da União Soviética discutido por Engels, mostrando como a desigualdade também funcionou no socialismo. Ela diz, tomando, por exemplo, a questão da maternidade, que
“Não seria possível obrigar diretamente uma mulher a parir: tudo o que se pode fazer é encerrá-la dentro de situações em que a maternidade é a única saída; a lei ou os costumes impõem-lhe o casamento, proíbem as medidas anticoncepcionais, o aborto e o divórcio. São exatamente essas velhas coações do patriarcado que a URSS ressuscitou; reavivou as teorias paternalistas do casamento; e com isso foi levada a pedir novamente à mulher que se torne objeto erótico: um discurso recente convidava as cidadãs soviéticas a cuidarem dos vestidos, a usarem maquilagem, a se mostrarem faceiras para reter seus maridos e incentivar-lhes o desejo.” (Beauvoir, 1987, p. 85)
E ainda acrescenta:
“É impossível, vê-se por esse exemplo, encarar a mulher unicamente como força produtora; ela é para o homem uma parceira sexual, uma reprodutora, um objeto erótico, um “Outro” através do qual ele se busca a si próprio.” (Beauvoir, 1987, p.85).
Nesse ponto, a observação de Beauvoir assemelha-se com a minha. O grande problema do homem e da mulher é ter o fruto de desejo no que lhe foi negado!
O papel da mulher sempre foi uma questão discutida na sociedade e até hoje ainda é. E como é, ou como foi difícil ao homem encarar que a mulher deve ser comparada com igualdade. Não são deveres e afazeres que definem se um sexo é melhor que o outro. Há atividades, as que exigem força física, por exemplo, em que se usam dois pesos e duas medidas. Há práticas que exigem mais força física e mais agilidade e talvez seja mais lógico que o homem vença nessas práticas; por outro lado, nada impede que isso aconteça com uma mulher. Penso também que o mesmo pode ser analisado em relação à lógica e ao raciocínio. Foi e é um grande absurdo um sexo querer definir o que deve ser ou não do outro. Uma sociedade baseada em igualdade sempre evolui com maior facilidade.
Para Beauvoir, não se trata de negar as contribuições da Biologia, da Psicanálise e do Materialismo Histórico, mas de considerar que
“o corpo, a vida sexual, as técnicas só existem concretamente para o homem na medida em que ele os apreende dentro da perspectiva global de sua existência.” (Beauvoir, 1987, p. 86).E ainda:
“O valor da força muscular, do falo, da ferramenta só se poderia definir num mundo de valores: é comandado pelo projeto fundamental do existente transcendendo-se para o ser” (Beauvoir, 1987, p. 86).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog